“Escolher não sofrer é um grande passo, mas é um passo, não é suficiente. Não tenho dúvidas que todo mundo aqui (…) invoca se libertar do sofrimento, mas não é só isso”, diz o professor de Yoga Marco Schultz, coordenador do Simplesmente Yoga e co-produtor do documentário “Eu Maior“, num satsang em um retiro de inverno deste ano. “Olha o mundo, olha o mundo, irmão, ninguém quer sofrer, óbvio. E aí esses livros de auto-ajuda vem e ‘ah, eu escolho não sofrer’… Não adianta. E quando a gente glamouriza essa escolha, pior ainda, porque tu se ilude. Quase como se quisesse colocar o sofrimento na gaveta, debaixo do tapete, e ‘não, eu vou escolher não sofrer'”.
Se escolher não sofrer é apenas um passo e não posso virar às costas ao sofrimento, o que devo fazer com ele? A resposta é óbvia, mas pode não fazer sentido num primeiro olhar. “A idéia do sofrimento, e essa é a contribuição de Buda, e de tantos outros, é a gente dizer um sim pro sofrimento“, diz Marco. “Ou seja, de voltarmo-nos a ele, ao invés de abandonarmos”. O sim é para acolhê-lo no sentido de primeiramente aceitá-lo, e então vê-lo profundamente, compreendê-lo profundamente. Correr ou negar o sofrimento é obviamente um equívoco caro, mas é o que geralmente fazemos.
“Se você olhar profundamente dentro da natureza do seu sofrimento, você encontrará uma caminho para sair dele“, disse certa vez o monge zen Thich Nhat Hanh. Claro, pois como você pode se libertar de algo que você não sabe o que é, não sabe como aparece, qual a causa? Inevitavelmente, por mais que você corra e fuja do sofrimento, ele vai lhe alcançar, porque ele vem por dentro. E esse “sim” é para olhar o sofrimento profundamente, para um contato presente pleno com ele, para ver o que ele é.
O objetivo do Yoga, então, “não é mudar de comportamento, e isso é bem importante de entender“. A mudança de comportamento, como explica Marco Schultz já quase no fim do trecho abaixo, é passar de um personagem a outro (personagem), sem se libertar do personagem. “Não é o objetivo sair de um extremo e ir pro outro, eu era um personagem e agora eu sou outro“.
Só vendo profundamente o sofrimento vamos poder compreender todas as outras coisas que estão conectadas a ele, como o sutil e fortíssimo movimento do desejo (que é o que cria a própria vontade de mudar de comportamento antes de entender o sofrimento). Pois obviamente se queremos mudar de comportamento, há um desejo. E mesmo que seja um desejo por um comportamento humanamente mais louvável ou socialmente mais aprovável, o comportamento idealizado ainda é um comportamento idealizado, projetado, conceituado. E não viver profundamente o próprio viver, em nome de usar o viver para afirmar comportamentos preconcebidos, também vai acabar em sofrimento.
O trecho do satsang do Marco segue mais abaixo, e o melhor é direto pra ele, entendendo o discurso da própria fonte, mas eu gostaria apenas de fazer um adendo sobre um outro aspecto importante, que é a confusão entre o não-sofrer e o não-ter-desprazer na vida. No Yoga, há uma visão de que a atração e a rejeição são um sistema de auto-aprisionamento do ser humano, que é denominado pela expressão Raga-Dvesha: são os princípios de afeição (raga) e aversão (dvesha). Em termos grosseiros, podemos dizer que vivemos num ciclo de identificação com os desejos de tentar atrair-para-nossa-experiência-o-que-gostamos e tentar evitar-o-que-desgostamos. Nesse sentido, o próprio evitar-o-que-não-gostamos é sofrimento — apesar de poder ser gerador de algum alívio ou prazer momentâneo. Mas se estamos identificados com o desejo de não querer alguma coisa, se precisamos não querer como afirmação de quem somos, então estamos presos àquilo. Isso é tão forte que o célebre yogue indiano Swami Sivananda disse certa vez que “Raga e Dvesha sozinhos constituem este Samsara ou este mundo de fenômenos”. Ele complementa dizendo que essa identificação com o desejo é causado pela ignorância (avidya), e que por isso o conhecimento de si mesmo é a principal solução.
“Se você tá identificado, tu vai sofrer. Se não está identificado, não vai sofrer. (…) E é por isso que não é mera escolha, é sadhana (prática, ou o meio de realização), é vida“.
Eis o vídeo com o trecho de 9min do satsang com Marco Schultz, com a permissão do próprio, a quem agradeço e reverencio:
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