A mente e seu sistema de reflexos, que “ignora a possibilidade do novo”: visões de David Bohm

Temos lidado com a nossa vida e com o mundo, majoritariamente, usando o pensamento. Mas o pensamento, como propõe o físico David Bohm, é um sistema de reflexos que costuma ignorar, ou ignora de fato, a possibilidade do novo, e assim se mostra incapaz de lidar com o mundo. Se isso for verdade, o que fazer?

Esse tema capital e o texto abaixo foram recomendações do leitor Bruno Honorato, que venceu a promoção do mantra tibetano Om Mani Padme Hum, criado em caligrafia tibetana pelo artista brasileiro Jigme Wangchuck, realizado aqui no Dharmalog em maio e que pediu aos leitores do blog recomendações de conteúdo sobre auto-conhecimento. Bruno enviou a sugestão do livro “O Pensamento Como Um Sistema“, de David Bohm, com uma apresentação instigante, que segue mais abaixo. O blog já havia publicado dois outros posts baseados no livro, mas a sugestão de Bruno traz mais uma faceta importante da visão de Bohm sobre o pensamento e a sociedade, e sobre como lidamos com o estado das coisas.

Os outros dois posts já publicados são os seguintes:

— “O que usamos pra resolver nossos problemas é, na verdade, a fonte dos nossos problemas”, David Bohm e o pensamento
— O mundo está um caos porque nosso pensar está em caos: David Bohm e o pensamento, PARTE 2

Nosso agradecimento ao Bruno Honorato e a todos que participaram. A quem lê esse post, tenha participado ou não da promoção, gostaria de convidá-lo a ler os trechos do livro e a apresentação do Bruno, que é notavelmente um interessado em auto-conhecimento como nós e com esse recomendação também nos convida a pensar — e a observar o que pensamos.

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“O PENSAMENTO COMO UM SISTEMA”, de David Bohm
Recomendacão e Apresentação por Bruno Honorato

“Bom, minha recomendação recai sobre o livro “O pensamento com um sistema” de David Bohm. O tema é incoerência, pensamento e sociedade.

David Bohm, nos seminários que promoveu durante novembro e dezembro de 1990 discute com os participantes da reunião sobre o porquê de mantermos uma sociedade incoerente por definição. A proposta de Bohm é que a sociedade é pensamento (tomando a palavra pensamento como o conjunto que engloba intelecto, emoção, instinto, corpo, a dimensão neurofisiológica e também uma dimensão coletiva). Segundo ele sugere, o pensamento, na forma como aprendemos a pensar,  é uma série de reflexos sobrepostos. Assim como o joelho, quando tocado pelo martelo, reage; a nossa mente também reage (corpo, emoção e pensamento) a cada nova situação com aquilo que está gravado em seu conteúdo, ou o que ele chama de sistema de reflexos.

O sistema de reflexos é uma maneira que o pensamento encontrou para se resguardar das situações que encontra. Ele propõe soluções a partir daquelas que tem “conhecimento”. Cada solução (que insurge dentro desse mesmo sistema) é gravada na memória e, conforme, o peso das emoções/imagens envolvidas, a solução ganha status de necessária. Assim, esse sistema de reflexos tende a se fechar a medida que tomamos essas resoluções como certas e necessárias. As proposições da mente se tornam condicionadas pelo peso que lhes atribuímos e os reflexos cada vez mais restritos.

A proposta de Bohm é que na medida em que o sistema de reflexos ignora a possibilidade do novo, ele se depara com sua incapacidade de lidar com o mundo. Incapacidade de ver (no sentido completo da palavra ver). A própria natureza, como se espera, renova a cada instante. E pensamento se torna incoerente por não acompanhar essa renovação. É próprio do pensamento colocar contradições a si mesmo para que ele tenha o que solucionar sempre, num movimento infindável. As soluções, entretanto, têm se tornado cada vez menos efetivas. As contradições têm atingido níveis críticos, inclusive de possível extinção da espécie. E o pensamento continua a manter-se fechado nas soluções que “crê” serem a resolução para os problemas que ele mesmo criou.

Assim, a proposta de Bohm, seguindo os diálogos com Krishnamurti, é que a partir da compreensão do pensamento como um sistema de reflexos, possamos observar a movimentação desses reflexos no âmbito particular. Observar no sentido de aprender como funciona a mente. Como ela age um pensamento após o outro. Mantendo sua dinâmica de um pensamento após o outro numa velocidade cada vez maior e (como é próprio do pensamento) estabelecendo-se como correta/certa.

Nesse sentido a atenção a si mesmo em cada momento é a observação do sistema de reflexos. Nada se pode sugerir, nenhum ganho, nenhum interesse em dominar a mente, nenhum interesse em bloquear o processo do pensamento. Apenas aprender. Ver como funciona.

Dado o momento em que estamos, só poderíamos supor que existe algo além do pensamento, algo que ele chama de “incondicionado“. Algo que ainda não esteja dentro do sistema. Embora, se assumirmos que é isso que estamos buscando, o sistema se apropria da busca como mais um problema que ele tem que resolver. E assim surgem os reflexos e a possível solução. Ao mesmo tempo, não podemos tomar o pensamento/reflexos como o único meio de responder adequadamente aos desafios. Porque a própria noção de desafio está englobada pelo pensamento.

Bohm sugere que a incoerência é fruto da incapacidade de ver. Da falta de atenção ao movimento do pensamento. O pensamento e o conflito/inconsistência/incoerência são exatamente o mesmo estado da mente. Embora a própria seleção natural tenha nos mostrado que é impossível manter um estado de incoerência durante muito tempo. É necessário então ver o que se passa. Aprender sobre o pensamento/incoerência. Não no sentido de se fragmentar para aprender sobre, mas no sentido de ver completamente o que somos, o que é o pensamento.

A sociedade, o pensamento e a incoerência, portanto, são uma só coisa. Nesse sentido não há o que se fazer, apenas observar e ver o que “nos acontece”.”

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O físico americano David Bohm.

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O PENSAMENTO COMO SISTEMA [Trechos] Por David Bohm
(Editora Madras, 2007) – Tradução: Teodoro Lorent

I (p. 29)

Eu diria que o pensamento gera o que geralmente chamamos na linguagem moderna de um sistema. Um sistema é um jogo de coisas ou partes conectadas. Mas, a maneira como as pessoas geralmente usam a palavra hoje em dia significa algo de todas as partes que são mutuamente interdependentes – não apenas por suas ações mútuas, mas por seus significados e por suas existências.

Uma empresa é organizada como um sistema – possui este departamento, outro departamento e aquele departamento. Eles não tem significado algum separadamente; eles somente conseguem operar juntos. Assim o corpo também é um sistema – a sociedade é um sistema de alguma forma. E assim vai.

Do mesmo modo, o pensamento é um sistema. Nesse sistema não estão inclusos apenas o pensamento, o que foi sentido e os sentimentos, mas inclui também o estado do corpo; inclui a sociedade como um todo – à medida que o pensamento balança para a frente e para trás em um processo pelo qual vem evoluindo desde a Antiguidade.” (…)

 

II (p. 55)

Estou propondo que esse sistema completo opera como um grupo de reflexos – o que o pensamento é um jogo sutil de reflexos potencialmente ilimitado; você pode acrescentar mais e mais e pode modificar seus reflexos. (…) Pode haver uma percepção da razão além dos reflexos; no entanto, qualquer coisa notada, mais cedo ou mais tarde, acaba se tornando um jogo de reflexos. E é isso que eu quero chamar de “pensamento” – incluindo a emoção, o estado carnal, a reação física e tudo mais.

É imprescindível que olhemos para isso como um sistema de reflexos. Um reflexo simplesmente funciona, como vimos no caso do joelho saltando. Entretanto, não vemos o pensamento como o reflexo do joelho saltando. Achamos que estamos gerando e controlando o pensamento. Essa forma de pensar faz parte de todo nosso histórico. No entanto, estou sugerindo que na realidade não é assim – que uma vasta parte do nosso pensamento surge simplesmente do sistema de reflexos. Você somente descobre o que o pensamento é depois que ele já surgiu. Nessas circunstancias, muda-se totalmente a maneira como vemos a mente, nossa personalidade e nosso histórico cultural como um todo.

 

III (p. 57)

No entanto, a pergunta é: esses reflexos são coerentes? De acordo com a teoria da evolução, os sistemas incoerentes não duram muito. Isso é chamado de “seleção natural”. Porém, no caso do pensamento, parece que fomos capazes de manter esses sistemas incoerentes de reflexos, pelo menos, por enquanto. (…) na nossa sociedade criamos condições para seguir à diante com muitas incoerências sem que realmente entrássemos em um processo de seleção. O ponto é que os reflexos podem se tornar incoerentes e se firmarem por causa de todos esses mecanismos. (…)

O que devo dizer é que, se há incoerência sustentável, ela se perpetua apesar do fato de haver evidencia mostrando que é incoerente. Dessa forma eu diria que uma resposta inteligente diante dessa incoerência seria pará-la, suspendê-la, começar a buscar o motivo da incoerência e, em seguida, mudá-la. No entanto, digo que há uma incoerência defensiva. Um trem de pensamento incoerente que se atrela nas endorfinas, caracteristicamente irá se defender, porque você se sentirá muito desconfortável quando questionado; o questionamento começa removendo as endorfinas.

(…) Em alguns casos, talvez isso não tenha tanta importância, mas há sempre um efeito, seja ele mínimo. E onde há um condicionamento poderoso, o efeito certamente será muito grande.

 

IV (p. 64)

A coisa principal que se deve notar é que suas ações incoerentes são reflexos. Você não está agindo de propósito. Você não sabe o que está fazendo. Da mesma forma que seu joelho pula quando você bate nele, queira você ou não. Do mesmo modo, quando algo toca esses condicionamentos reflexivos, você simplesmente pula. Gera o resultado que você não deseja. Logo, você tenta conscientemente, alcançar “A”, mas o reflexo pula e lhe dá o “B”. E, então você diz: “Eu não quero B”. Você não sabe de onde está vindo, então você luta contra o “B”, enquanto segue com o reflexo que já foi gerado. Você está vendo isso, é aí que está o problema?

(…) estou sugerindo que nos enfoquemos no aprendizado sobre isso. Não sabemos ainda o que fazer com isso. Temos de nos interessar pelo aprendizado por si só, pois, se for por qualquer outro motivo, isso acabará por entrar no condicionamento.

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