O discurso dos 5 caminhos para eliminar a raiva, segundo Shariputra, assistente-chefe do Buda

No site de um templo budista vietnamita, o monge Bhikkhu Nguyen Thien apresenta esse discurso abaixo com o título “Como Amar o Inamável” (ou Não-Amável) (How to Love the Unlovable), uma versão do original “Sutra dos Cinco Modos de Pôr Fim à Raiva“, que segue abaixo com tradução para o português de Monge Komyo, a partir da versão em inglês feita pela comunidade do monge Zen Thich Nhat Hanh (Plum Village). Como seria possível eliminar a raiva? Ou ainda como seria possível amar o inamável, ou, para usar de uma provocação à própria raiva, como amar os detestáveis, os ignorantes, os maledicentes, aqueles que desrespeitam, os aproveitadores, e os repulsivos?

O amor verdadeiro não tem discriminação nem julgamento“, diz o monge Nguyen Thien na apresentação do texto. Ou seja, temos que começar tirando todos os adjetivos da pergunta – “inamáveis”, “detestáveis”, “ignorantes”, “maledicentes”, “malignos”, “repulsivos” etc – criados a partir do julgamento individual. “E ele (o amor) é aprimorado com uma boa escuta e com compreensão“.

“O amor é expressado através de cuidado e da vontade de ajudar, independente de origem, cor ou credo. Com amor nós vencemos qualquer obstáculo. Somos integrantes da mesma raça humana. Nosso Buda nos ensinou que cada ser vivo tem lágrimas salgadas e sangue vermelho, alegria e tristeza, e o mesmo medo de morrer e o desejo de viver. Estamos na mesma jornada de vida e morte. Atravessamos a vida como irmãos e irmãs. Mantendo esses valores em mente, e percebendo a realidade da vida, deveríamos amarmos uns aos outros cada vez mais, e entender mais e simpatizar mais uns com os outros”.
~ Bhikkhu Nguyen Thien

O Venerável Shariputra, um dos principais discípulos de Buda Shakyamuni e considerado por ele um dos assistentes-chefe no “giro da roda do Dharma”, ensina esse olhar profundo e sábio conforme ouviu do próprio Buda em certa ocasião. O sutra traz cinco maneiras de eliminar a raiva, mas eliminar não de uma maneira repressiva, repreensiva, evitadora ou superficial, mas justamente de um jeito sábio, como Shariputra relata, se referindo repetidamente à capacidade de compreensão, ao uso da atenção correta e à ajuda e compaixão.

Segue o texto do sutra abaixo, com os agradecimentos ao Monge Komyo e a Thich Nhat Hanh pela publicação e distribuição traduzidos dos originais.

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“SUTRA DOS CINCO MODOS DE PÔR FIM À RAIVA”
(ANGUTTARA NIKAYA III.186)
Versão traduzida para o português por Monge Komyo, a partir do inglês versado pela Plum Village, comunidade Zen dirigida pelo monge Thich Nhat Hanh. “Para livre distribuição, como exercício de Dana” (generosidade).

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Assim eu ouvi certa vez quando o Buddha residia no Monastério de Anathapindika no Bosque Jeta, perto da cidade de Sravasti.

Um dia o Venerável Shariputra disse aos monges:

“Amigos na prática, hoje eu quero compartilhar convosco cinco modos de pôr um fim à raiva. Por favor escutai cuidadosamente e ponde em prática o que vos ensino.”

Os Bhikshus (monges) concordaram, escutando cuidadosamente. O Venerável Sariputra disse:

“Quais são os cinco modos de pôr um fim à raiva?”

“Eis o primeiro modo, meus amigos: Se há alguém cujas ações não são virtuosas mas as palavras são virtuosas, e se devido a isso vós sentirdes raiva de tal pessoa, sendo sábios deveríeis saber como meditar para pôr um fim a esta raiva.”

“Meus amigos, digamos que haja um bhikshu praticando o ascetismo, e que ele veste um manto (Kasaya) de retalhos. Um dia ele passa por um monte de lixo imundo de excremento, urina, mucos e todos os outros tipos de sujeira, e vê no montão de lixo um pedaço de pano que ainda está intacto. Ele usa sua mão esquerda e pega o pedaço de pano, e com sua mão direita pega o outro extremo e o estica. Ele vê que o pedaço de pano não está rasgado e que também não foi sujado por excremento, urina, cuspe e outros tipos de sujeira. Imediatamente ele o dobra e o guarda para trazer à casa, para lavá-lo bem e cosê-lo junto com outras peças de tecido em seu manto de retalhos. Assim é o mesmo, meus amigos, quando alguém cujas ações não são virtuosas mas as palavras sim. Nós não deveríamos prestar atenção para a ação demeritória desta pessoa. Nós deveríamos estar só atentos às suas palavras virtuosas de forma a poder pôr um fim à nossa raiva. Alguém que é sábio deve praticar deste modo.”

“Meus amigos, eis o segundo método: Se há alguém cujas palavras não são virtuosas mas as ações são virtuosas, e se devido a isso vós sentirdes raiva de tal pessoa, sendo sábios deveríeis saber como meditar para pôr um fim a esta raiva.”

“Meus amigos, digamos que não longe da aldeia haja um profundo lago de água, mas cuja superfície da água seja coberta com algas e grama. Agora, alguém se acerca do lago, e tal pessoa está muito sedenta e sofrendo grandemente com o calor. Ele retira suas roupas e as deixa na margem do lago, pula na água e usa suas mãos para tirar as algas e a grama, e em conforto e com prazer toma seu banho e bebe a água fresca. Assim é o mesmo, meus amigos com alguém cujas palavras não são virtuosas, mas cujas ações são virtuosas. Vós não deveríeis prestar atenção às palavras daquela pessoa, deveríeis estar atentos para as ações daquela pessoa para assim poder pôr um fim à sua raiva. Alguém que é sábio deve praticar deste modo.”

“Eis o terceiro método meus amigos: Se há alguém cujas ações não são virtuosas, as palavras não são virtuosas, mas que em seu coração haja virtude ainda que pouca, e se devido a isso vós sentirdes raiva de tal pessoa, sendo sábios deveríeis saber como meditar para pôr um fim a esta raiva.”

“Meus amigos, digamos que alguém esteja indo para uma encruzilhada. Ele está muito fraco, muito sedento, muito miserável, muito acalorado, despojado e cheio de tristeza. Quando ele chega à encruzilhada vê uma pegada de búfalo, e naquela pegada há água de chuva um pouco estagnada. Ele pensa consigo mesmo: ‘Com tão pouca água nesta pegada de búfalo na encruzilhada, se eu fosse usar minha mão ou uma folha para tomar a água, eu a perturbaria e ela se tornaria lamacenta e impotável. Então eu não poderia extinguir minha sede e terminar minha privação, o calor que estou sentindo e todo meu sofrimento. Neste caso tenho que me ajoelhar, colocar meus braços e meus joelhos na terra, e usar minha boca para beber a água diretamente do buraco.’ Imediatamente ele se ajoelha na terra, coloca seus lábios na água da pegada de búfalo e a bebe.”
“Da mesma forma, meus amigos, quando vírdes alguém cujas ações não são virtuosas, cujas palavras não são amáveis mas que no coração possua ainda um pouco de virtude, vós não deveríeis prestar atenção às ações daquela pessoa e às palavras que não são amáveis, mas sim deveis permanecer atentos à virtude que, mesmo pouca, está em seu coração para assim poder pôr um fim à sua raiva. Alguém que é sábio deve praticar deste modo.”

“Eis o quarto método meus amigos. Se há alguém cujas ações não são virtuosas, as palavras não são virtuosas, e que em seu coração não haja nada que poderia ser chamado de virtude – ainda que pouca, então se vós vos enraivecerdes com tal pessoa, sendo sábios deveríeis saber como meditar para pôr um fim a esta raiva.”

“Meus amigos, digamos que alguém esteja fazendo uma longa jornada e, quando já percorreu parte da jornada, cai doente. Fica em um estado muito ruim, completamente exausto, só, sem qualquer companheiro de viagem, a aldeia de onde partiu já se encontra muito distante e a aldeia para onde vai também está muito distante. O homem entra em desespero e sabe que morrerá antes de terminar a jornada. Se neste momento outra pessoa surge e vê a situação deste homem, ela vai imediatamente à sua ajuda. Ela o conduz pela mão para a próxima aldeia, cuida dele, trata-o da enfermidade e se certifica de que ele tenha tudo necessário no tocante a roupas, medicamentos e comida. Graças a esta ajuda a vida daquela pessoa é salva. A razão de sua vida ser salva está na compaixão e no amor pleno da pessoa que a ajudou.”

“Da mesma forma, meus amigos, quando virdes alguém cujas ações não são virtuosas, as palavras não são virtuosas, e que em seu coração não haja nada que poderia ser chamado de virtude, ainda que pouca, vós deveríeis dar vazão a este pensamento: ‘Alguém cujas ações não são virtuosas, as palavras não são virtuosas, e que em seu coração não haja nada que poderia ser chamado de virtude, ainda que pouca, é alguém que está sofrendo. Sem dúvida ele está a caminho de uma vida de extremo e grande sofrimento. Se ele não encontrar um bom amigo espiritual, não haverá nenhuma chance para que possa mudar e seguir para uma vida de felicidade. ’ Pensando desta forma vós sereis capazes de abrir seu coração àquela pessoa com carinho e compaixão. Vós podereis pôr um fim à sua raiva e ireis ajudar aquela pessoa. Alguém que é sábio deve praticar deste modo.”

“Meus amigos, eis o quinto método: Se há alguém cujas ações são virtuosas, as palavras são virtuosas e cuja mente também é virtuosa, e se por acaso vós sentirdes raiva de tal pessoa, sendo sábios deveríeis saber como meditar para pôr um fim a esta raiva.”

“Meus amigos, suponhais que longe da aldeia haja um lago muito bonito. A água do lago é clara e doce, o leito do lago é plano, as margens do lago estão cheias de belas árvores, grama verde cresce ao redor dele, e em todos os lugares as verdes árvores dão fresca sombra. Alguém chega ao lago e está sedento, está sofrendo de calor e o corpo está coberto de suor. Ele retira suas roupas e as deixa na beira do lago, mergulha na água e experimenta grande conforto e prazer tomando banho e bebendo desta água. Todo seu calor, sede e sofrimento desaparecem no mesmo instante.”

“Da mesma maneira meus amigos, quando víreis alguém cujas ações são virtuosas, as palavras são virtuosas e de cuja mente também é virtuosa, vós deveríeis prestar atenção a toda virtude daquela pessoa em relação ao corpo, fala e mente e não deveríeis permitir que a raiva vos domine. Se não sabeis viver felizes junto a alguém tão verdadeiro quanto este, vós não podereis ser chamados homens de sabedoria.”

“Meus queridos amigos, eu compartilhei convosco os cinco modos de pôr um fim à raiva.”

Quando os bhikshus ouviram as palavras do Venerável Shariputra eles regozijaram-se em recebê-las e pô-las em prática.

Majjhima Agama 25 (corresponde ao Anguttara Nikaya III.186)

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