Depois de fazer uma introdução à palavra tanha e seu significado mais básico (no post anterior: Tanha, do idioma Pali: a palavra que Buda usou para definir a sede, a ânsia, o desejo que é a fonte do sofrimento), podemos ver como ela foi proferida originalmente por Buda no seu discurso. A expressão foi usada no ensinamento das Quatro Nobres Verdades, considerado um dos primeiros e mais antigos discursos do Buda, e tanha foi pronunciada especificamente na Segunda Nobre Verdade. Segundo a tradução de Thanissaro Bhikkhu do Pali para o inglês, a Segunda Nobre Verdade tal qual foi ensinada por Buda e que está contida no Dhammacakkappavattana Sutta, que é o registro do primeiro discurso que Buda teria dado logo que atingiu o despertar, foi assim proferida:
“Agora, monges, esta é a nobre verdade da origem do sofrimento: é este desejo que conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto é, o desejo pelos prazeres sensuais, o desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir”.
(tradução para o português pelo site Acesso ao Insight)
A versão em inglês original de Thanissaro Bhikkhu é a seguinte:
“And this, monks, is the noble truth of the origination of stress: the craving that makes for further becoming — accompanied by passion & delight, relishing now here & now there — i.e., craving for sensual pleasure, craving for becoming, craving for non-becoming”.
(tradução para o inglês por Thanissaro Bhikkhu)
A versão em Pali original não é fácil de encontrar, mas, segundo fontes, o que Buda em Pali teria dito foi o seguinte (Samydaya Sacca):
Idam kho pana, Bhikkhave, dukkha-samudayo ariya saccam: Yayam tanha ponobhavika nandiragasahagata tatra tatrabhinandini . . . seyathidam, kamatanha, bhavatanha, vibhavatanha.
Ali você vê a palavra “tanha” sublinhada propositadamente por mim, exatamente onde ela estava no texto original, deixando um pouco mais claro os diferentes desejos. A fonte dessa versão em Pali é a publicação do Dhammacakkappavattana Sutta pela Buddhist Publication Society (há também em um site que descreve “The Great Discourse on the Turning of the Wheel of Dhamma – Part V“).
Outras fontes ainda definem tanha especificamente como “desejo desvirtuado“, o que de certa maneira corrobora a explicação de Bhikkhu Boddhi (do post anterior). Segundo essa visão, existem também desejos positivos, como o desejo de iluminação e o desejo pelo bem das outras pessoas, e esse tipo de desejo seria definido geralmente com outra palavra, “chanda“.
Para completar, segue o início de uma explicação que outro monge Theravada, este da tradição tailandesa, Luang Por Ajahn Sumedho, faz sobre tanha, diferenciando os três tipos de desejo, conforme está no discurso original do Buda:
“Desejo ou tanha em Pali é importante de entender. O que é o desejo? Kama tanha é muito fácil de entender. Esse tipo de desejo é querer prazeres dos sentidos através do corpo ou de outros sentidos e sempre buscar coisas para excitá-los ou agradá-los – isso é kama tanha. Você pode realmente contemplar: como é quando você tem um desejo por prazer? Por exemplo, quando você está comendo, se você está faminto e a comida está deliciosa, você pode estar atento a querer dar outra mordida. Note o sentimento quando você está saboreando algo gostoso, e note como você quer mais daquilo. Não acredite somente, experimente. Não pense que você conhece isso porque isso aconteceu no passado. Tente quando você for comer. Saboreie algo delicioso e veja o que acontece: um desejo por mais aparece. Isso é kama tanha.
Também temos o sentimento de querer nos tornar algo. Mas se há ignorância, então nós não buscamos algo delicioso para comer ou uma música bonita para ouvir, nós podemos ser pegos na dimensão da ambição e obtenção – o desejo de se tornar. Somos pegos no movimento de lutar para sermos felizes, de buscar nos tornar ricos; ou podemos tentar fazer nossa vida ser mais importante por empreender algo para consertar o mundo. Então note esse sentido de querer se tornar algo outro que o que você é neste momento. Ouça o bhava tanha da sua vida: ‘Eu quero praticar meditação para que eu possa ser livre da dor. Quero me tornar iluminado. Quero me tornar um monge ou uma monja. Quero ser um iluminado como um leigo. Quero ter uma esposa e filhos e uma profissão. Quero desfrutar do mundo dos sentidos sem ter que desistir de nada e me tornando um sábio iluminado também’.
Quando nós nos desiludimos com a vontade de se tornar algo, então há um desejo de nos livrar das coisas. Assim nós contemplamos vibhava tanha, o desejo de se livrar: “Quero me livrar do meu sofrimento. Quero me livrar da minha raiva. Tenho essa ira e não quero mais tê-la. Quero me livrar do ciúme, do medo e da ansiedade. Note isso como um reflexo de vibhava tanha. Estamos na verdade contemplando aquilo dentro de nós que quer se livrar das coisas; não estamos tentando nos livrar de vibhava tanha. Não estamos tomando uma posição de ser contra o desejo de nos livrar das coisas nem de encorajar esse desejo. Ao invés disso, estamos refletindo, ‘É assim, sinto isso ao querer me livrar de algo, tenho que conquistar minha raiva, tenho que matar o Demônio e me livrar da ambição – então vou me tornar…’ Podemos ver desse trem de pensamentos que se tornar algo ou se livrar de algo são duas coisas muito associadas. Tenha em mente entretanto que essas três categorias de kama tanha, bhava tanha e vibhava tanha são maneiras meramente convenientes de contemplar o desejo. Não são formas totalmente separadas do desejo mas aspectos diferentes dele.
A segunda visão sobre a Segunda Nobre Verdade é: ‘O desejo deveria ser solto e abandonado’. Isso é como o desapego aparece em nossa prática. Você tem uma visão de como o desejo deveria ser solto, mas a visão não é o desejo de soltar algo. Se você não for muito sábio e não estiver realmente refletindo em sua mente, você tenderá a seguir o “Eu quero me livrar de, eu quero soltar todos os meus desejos” – mas este é apenas mais um desejo. Entretanto, você pode refletir sobre isso; você pode ver o desejo de se livrar, o desejo de se tornar ou o desejo de prazer dos sentidos. Entendendo esses três tipos de desejo, você pode deixá-los ir. A Segunda Nobre Verdade não pede que você pense ‘Tenho muitos desejos sensuais’ ou ‘Sou muito ambicioso, tenho realmente muito bhava tanha e isso e aquilo etc’ ou ‘Sou um verdadeiro niilista. Quero mudar. Sou um verdadeiro fanático vibhava tanha. Esse sou eu’ A Segunda Nobre Verdade não é isso. Não é sobre se identificar com os desejos de sobremaneira, é sobre reconhecer o desejo”.
~ Ajahn Sumedho
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Imagem da Wikimedia Commons.
muito bom!!
Caos is inheerent in all compounded things. Please strive with diligence.
Um dos melhores textos do ano aqui no site…
Joga na cara nossos desejos que imaginamos escondidos. Eles estão lá..
Sim, concordo. Ainda 2 hrs após ainda me acompanhando como um satélite da m/mente.
Gasshô Norma
Obrigado, Léo. A explicação do Ajahna Sumedho é interessante mesmo, mandando a gente comer ou beber algo e perceber. Ou falando das nossas intenções com a meditação, por exemplo, quantas luvas foram vestidas ao ler esse trecho? :)
Saudações,
Nando
Espetacular!
Sem dúvida, ganhei o meu dia. Nunca vi ‘filigranas’ ser tão claramente expostas. Obrigada, Ajahn Sumedho! (salvando-o)
Ah,sou budista porque PRECISO …
Boa sorte, Norma
A sutileza desses pensamentos é espantosa! E pensar que foram elaborados num tempo em que a psicologia ainda dormia num estado de vir a ser…Afinal, esses ensinamentos datam de antes de Cristo.Analisando-os, percebe-se sua grande simplicidade e irrefutável verdade.Podemos então ver, com clareza, a raíz do sofrimento que construímos para nós mesmos.
Este texto é mais um farol no nosso caminho!Obrigada!
Graça
Sempre fico tentando imaginar a situação e a época onde isso foi percebido e ensinado e ESPANTONSO é uma boa palavra pra definir, Graça. Nós que vivemos uma época de informação aos terabytes por segundo estamos apreciando profundamente um ensinamento dado há 2.500 anos, exatamente como ele foi dado.
E, como disse a Norma, vamos pra casa orbitando a mente. No meu caso, muito mais que 2h. :)
Saudacões,
Nando
Mas a psicologia, PNL, hipnose e outras ciências vieram desse sistema. Ele também existia na Europa mas dentro de alegorias míticas e alquímica. Eu sei disso porque sou ocultista.
Na verdade, a minha satisfação não veio do ‘estudo’ contido no Post (precioso). Veio dele ter me dado a conhecer os ‘nomes’. Apesar de muitos seguirem o “Nomear Limita”, não é o meu caso. Sigo os gregos. Nomeie os seus “vícios”. Só assim, começará a superá-los e… não os abandone de pronto. “Enterre-os e Vigie!”.
Foram menos de 2 horas, mas de frenética atividade no cardíaco, por contentamento. :)
E por isso, volto agradecer, Norma
Não entendi o porquê da tradução em inglês. E porque não em francês, alemão, etc. é questão coolonial?
Cláudio, se vc entendeu o principal, não se preocupe com os detalhes.
Mais aí vão alguns porquês: abundância de boas traduções destes textos para o inglês (Thanissaro Bhikkhu e Bhikkhu Boddhi, neste post), limitação de fontes disponíveis fora do inglês (esse post usou o Access To Insight e dois outros sites). limitação do tradutor (deste blog), necessidade de compreensão mais fluente possível das traduções para outra língua (a partir do Pali ou sânscrito) para poder entender e publicar qualquer coisa a respeito, etc.
ABS.
Nando