“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo”: uma visão de Heidegger em 1953, por Antônio Abujamra

Num texto forte e visionário publicado em seu livro “Introdução à Metafísica“, em 1953, o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) revelou uma (pre)visão particular sobre os anos e décadas que provavelmente iriam se seguir, para o momento, como ele diz, “quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente” (e seguem-se outras circunstâncias). Aparentemente este momento chegou, estamos nele. E o texto segue abaixo, como foi declamado pelo ator, diretor de teatro e apresentador Antônio Abujamra em seu programa Provocações, na TV Cultura. Abaixo dele, o vídeo do programa, e depois uma nova tradução do alemão para o inglês, publicada em 2000 pela Yale University Press (que vale a pena ler para notar algumas diferenças).

“Quando a tecnologia e o dinheiro tiverem conquistado o mundo; quando qualquer acontecimento em qualquer lugar e a qualquer tempo se tiver tornado acessível com rapidez; quando se puder assistir em tempo real a um atentado no ocidente e a um concerto sinfônico no oriente; quando tempo significar apenas rapidez online; quando o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos, quando um esportista ou artista de mercado valer como grande homem de um povo; quando as cifras em milhões significarem triunfo, – então, justamente então — reviverão como fantasma as perguntas: para quê? Para onde? E agora? A decadência dos povos já terá ido tão longe, que quase não terão mais força de espírito para ver e avaliar a decadência simplesmente como… Decadência. Essa constatação nada tem a ver com pessimismo cultural, nem tampouco, com otimismo… O obscurecimento do mundo, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odiosa contra tudo que é criador e livre, já atingiu tais dimensões, que categorias tão pueris, como pessimismo e otimismo, já haverão de ter se tornado ridículas.”
~ Martin Heidegger (1889-1976), em Introdução à Metafísica

Segue o vídeo como interpretado por Antônio Abujamra, como transmitido no programa Provocações:

 

O mesmo trecho segue numa nova tradução para inglês, por Gregory Fried e Richard Polt, publicado pela Yale University Press, em 2000. Note algumas mudanças pequenas mas significativas: 1) o sentido da primeira frase é “quando o canto mais longínquo do mundo tiver sido conquistado tecnologicamente e puder ser explorado economicamente“; 2) a expressão original traduzida como “decadência dos povos” acima é originalmente “decadência espiritual“; 3) Heidegger usou sua expressão “Dasein” numa frase que denota a ausência de reflexão e percepção sobre o “tempo como história”, enquanto na tradução acima se diz apenas que “o tempo, como história, houver desaparecido da existência de todos os povos”; e 4) a tradução em inglês fala em “experimentar” eventos distantes no planeta e não somente “assistir”, como está na tradução em português acima. Há uma outra tradução para o português que se aproxima mais desses sentidos, e pode ser encontrada no blog Legio Victrix, e segue abaixo, logo depois da nova tradução para o inglês.

Os novos tradutores informam que “Introdução à Metafísica” foi escrito por Heidegger originalmente em 1935, portanto quase 20 anos antes, a partir de uma palestra, e então foi separado e publicado como livro em 1953, com anotações e atualizações. Para mais informações, procure a nova edição referida, ainda sem tradução para o português.

NOVA TRADUÇÃO PARA O INGLÊS (2000):

“When the farthest corner of the globe has been conquered technologically and can be exploited economically; when any incident you like, in any place you like, at any time you like, becomes accessible as fast as you like; when you can simultaneously “experience” an assassination attempt against a king in France and a symphony concert in Tokyo; when time is nothing but speed, instantaneity, and simultaneity, and time as history has vanished from all Dasein of all peoples; when a boxer counts as the great man of a people; when the tallies of millions at mass meetings are a triumph; then, yes then, there still looms like a specter over all this uproar the question: what for?—where to?—and what then? The spiritual decline of the earth has progressed so far that peoples are in danger of losing their last spiritual strength, the strength that makes it possible even to see the decline [which is meant in relation to the fate of “Being”] and to appraise it as such. This simple observation has nothing to do with cultural pessimism—nor with any optimism either, of course; for the darkening of the world, the flight of the gods, the destruction of the earth, the reduction of human beings to a mass, the hatred and mistrust of everything creative and free has already reached such proportions throughout the whole earth that such childish categories as pessimism and optimism have long become laughable.”
~ Martin Heidegger, em “Introduction to Metaphysics”

A tradução em português que mais se aproxima desta em inglês, como foi publicada no blog Legio Victrix.

“Quando o recanto mais remoto do globo tiver sido conquistado pela técnica e explorado pela economia, quando um qualquer acontecimento se tiver tornado acessível em qualquer lugar a qualquer hora e com uma rapidez qualquer, quando se puder “viver” simultaneamente um atentado a um rei na França e um concerto sinfônico em Tóquio, quando o tempo for apenas rapidez, momentaneidade e simultaneidade e o tempo enquanto História tiver de todo desaparecido da existência de todos os povos, quando o pugilista for considerado o grande homem de um povo, quando os milhões de manifestantes constituírem um triunfo – então, mesmo então continuará a pairar e estender-se, como um fantasma sobre toda esta maldição, a questão: para quê? – para onde? – e depois, o que? O declínio espiritual da terra está tão avançado que os povos ameaçam perder a sua última força espiritual que [no que concerne o destino do “Ser”] permite sequer ver e avaliar o declínio como tal. Esta simples constatação nada tem a ver com um pessimismo cultural, nem tão-pouco, como é óbvio, com um otimismo; pois o obscurecimento do mundo, a fuga dos deuses, a destruição da terra, a massificação do homem, a suspeita odienta contra tudo que é criador e livre, atingiu, em toda a terra, proporções tais que categorias tão infantis como pessimismo e otimismo já há muito se tornaram ridículas”.
~ Martin Heidegger, em “Introdução à Metafísica”

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Compartilhado por Celio Nunes Leite.

Arte: Michael Newton (mikenewtonartist.com)

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15 Comments

  1. says: Vitor

    Parabéns pelo site!!!
    Muito Bom.

    Toda a evolução busca preencher o vazio, mas poucos param para compreende-lo.
    Essa é minha visão sobre a evolução atual.

  2. says: A. SALOMÃO

    Quando a água deixa a fonte nascitura e caminha em direção ao mar, ela não mais apresenta as características de sua pureza original. Assim também, é toda obra literária que é traduzida da língua mater para uma outra estrangeira. O pensamento do autor, quase sempre é maculado pela subjetividade do tradutor, o qual muitas vezes está a serviço de uma ideologia… É só uma reflexão despretensiosa. Paz seja com todos!

  3. Penso que a visão forte de Heidegger já se fez real, se é que existe alguma coisa real fora a morte. Os Hopi, índios mais espiritualizados da América do Norte, já tinham uma palavra para o que está acontecendo hoje: Koianisqatsi. Quer dizer, a degradação tamanha de um sistema que não há mais possibilidade de recuperação.Otimismo e pessimismo já são ridículos hoje. Para o crescimento que se espera no mundo, precisamos de três terras para ter onde colocar o lixo. Os ataques aos bancos de coral, às florestas, às nascentes, aos rios e aos mares, já desequilibram o delicado tricô onde tudo está ligado a tudo e se cortar um ponto se desfaz o tecido. Não teremos mais nada a oferecer às fomes e sedes, senão dinheiro. Que mata tudo, menos o essencial para fazer renascer os corpos em que habitamos. Reconhecer essas verdades talvez prolongue um pouco a agonia do Planeta Azul e a nossa. Mais nada.

    1. says: Alberto G Machado

      Muito bonito e preciso o seu comentário. A sua preocupação é a preocupação de todos os que veem o mundo marchar para a decadência, sem muito o que possa fazer.

  4. says: norma7

    O texto vai ser visionário enquanto continuarmos sem a consciência de que a Terra é um organismo vivo.
    (“A Terra não é um planeta estático, imutável. Em outras palavras, a Terra não É assim. A Terra ESTÁ assim.)

    Abujamra até dando ‘Bom dia!” é impactante. :)

    O Dharmalog fez um belo trabalho como a apresentação. Grata.

    E a Valmira, habilmente, me lembrou-me os “Hopis”

    (“nós somos aqueles que nós mesmos estávamos esperando”) http://dharmalog.com/2012/07/20/oracao-dos-indios-americanos-hopi-nos-somos-aqueles-que-nos-mesmos-estavamos-esperando/)

    Que mais dizer, que não seja agradecer e me despedir,
    Boa sorte, Norma

    P.S.: Veja cinco momentos em que a vida quase acabou

    http://www.terra.com.br/noticias/infograficos/extincao-massa/

  5. says: Jaime Balbino

    Parabéns por resgatar Hidegger neste momento. De fato ele foi o maior profeta do impacto da tecnologia na vida social com seu foco na Alemanha Nazista como a vanguarda da primazia da técnica na modernidade (não como um desvio indesejável daquela época).
    Lembra-me muito também alguns poemas de Fernando Pessoa, outro deslumbrado com os novos tempos, mas sem saber como explicar e apenas sentindo-os.

  6. Faltou o texto na língua original, além de, se possível, mostrar quais as atualizações entre a versão dos anos 1930 e de 1950. Afinal, já do Alemão para o Inglês se altera muita coisa, sobretudo em se tratando de filosofia. Mas, interessante o propósito da postagem.

  7. says: Maurício Pereira

    Não sei se é do vosso conhecimento a totalidade do escrito de Martin Heidegger de onde foi extraído este texto?!

    No resto do texto (que não está aqui escrito) Martin Heidegger, que é inquestionavelmente um grande pensador e cujo excerto que aqui é transcrito é efectivamente quase profético, parte de um princípio etnocêntrico de que o povo germânico é um povo metafísico, num hipotético patamar superior à restante europa.

    Com essa continuação (que aqui não foi transcrita) não posso concordar, uma vez que segue uma linha de pensamento que aliás está na génese da Alemanha nazi. Partido nazi do qual Martin Heidegger fez parte.

    Saudações

  8. says: Rita

    Comprei num sebo a edição de 1966 do introdução à Metafísica e não localizei a passagem. Vocês podem indicar a referência precisa? Obrigada

    1. Oi Rita,

      Precisaria fazer uma pesquisa mais específica na tradução que você adquiriu, mas no trabalho em inglês citado de Gregory Fried e Richard Polt está nas páginas 40 e 41.

      Se puder, encontrando ou não encontrando, gostaria de pedir teu feedback sobre a tradução que você adquiriu, para que possamos saber o que está publicado nela e assim termos mais esclarecimento.

      Obrigado

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