“Cada tentativa sincera ao seu tempo recebe seu prêmio”: a voz do silêncio, de Helena Blavatsky, por Fernando Pessoa

“Eis aqui o real Budismo Mahayana.”
~ D.T. Suzuki

“Acredito que este livro tem influenciado fortemente muitos aspirantes e buscadores sinceros da sabedoria e da compaixão do Caminho do Bodhisattva.”
~ S.S. 14th Dalai Lama

O trecho abaixo é da versão em português traduzida por Fernando Pessoa do clássico livro “A Voz do Silêncio” (The Voice of Silence), escrito pela ocultista e fundadora da Teosofia Helena Petrova Blavatsky (1831-1891) contendo fragmentos extraídos do Livro dos Preceitos Áureos (leitura obrigatória  em vários mosteiros budistas) e cujos dois testemunhais acima dão idéia da magnitude da obra. Livro pequeno, com edições que variam geralmente de 80 a 112 páginas, “A Voz do Silêncio” é um tratado místico, que apesar de ser inspirado na tradução dos Preceitos Áureos, traz a convicção e a extensa bibliografia que Blavatsky estudara para explorar as questões da existência humana, como o Bhagavad Gita, o Sutta Nipata, e o Kathopanishad. O trecho abaixo traz também as notas explicativas (numeradas) sobre cada expressão que Blavatsky usa mas que não são comumente conhecidas no Ocidente.

A participação do poeta português Fernando Pessoa (1888-1935) como tradutor deste livro pode parecer curiosa, mas ele traduziu grandes obras do ocultismo, como as de Helena Blavatsky, mas também de Annie BesantC. W. Leadbeater. A Teosofia foi uma das principais, ou talvez a principal, descoberta do poeta português em sua inquietação existencial, que o faria penetrar nos escritos ocultistas e se empenhar em descobrir mais sobre Alquimia, Astrologia, RosaCrucianismo, Kabala, Maçonaria etc, chegando a trabalhar como astrólogo (faria mais de mil mapas astrais). Em sua ficha pessoal datada de 1935 (ano de sua morte), Pessoa escreveria o seguinte a respeito de sua posição religiosa: “Cristão gnóstico e portanto inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas e, sobretudo, à Igreja Católica. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo, que tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria.” 

Segue o trecho de “A Voz do Silêncio”.

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A VOZ DO SILÊNCIO [TRECHO] Por Helena Petrova Blavatsky (Tradução de Fernando Pessoa)

Estas instruções são para aqueles que não conhecem os perigos dos Iddhi (1) inferiores.

Aquele que quiser ouvir a voz de Nada (2), o Som sem som, e compreendê-la, terá de aprender a natureza do Dharana (3).

Tendo-se tornado indiferente aos objetos da percepção, deve o aluno procurar o Raja dos sentidos, o produtor de pensamentos, aquele que acorda a ilusão.

A Mente é a grande assassina do Real.

Que o discípulo mate o assassino.

Porque quando para si mesmo a sua própria forma parece irreal, como o parecem, ao acordar, todas as formas que ele vê em sonhos; quando deixar de ouvir os muitos, poderá divisar o Um – o som interior que mata o exterior.

Então, e só então, abandonará ele a região de Asat, o falso, para chegar ao reino de Sat, o verdadeiro.

Antes que a Alma possa ver, deve ser conseguida a harmonia interior, e os olhos da carne tornados cegos a toda a ilusão.

Antes que a Alma possa ouvir, a imagem (o homem) tem de se tornar surda aos rugidos como aos segredos, aos gritos dos elefantes em fúria como ao sussurro prateado do pirilampo de ouro.

Antes que a Alma possa compreender e recordar, ela deve primeiro unir-se ao Falador Silencioso, como a forma que é dada ao barro se uniu primeiro ao espírito do escultor.

Porque então a Alma ouvirá e poderá recordar-se.

E então ao ouvido interior falará A Voz do Silêncio e dirá:
Se a tua Alma sorri ao banhar-se ao sol da tua vida; se a tua Alma canta dentro da sua crisálida de carne e de matéria; se a tua Alma chora dentro do seu castelo de ilusão; se a tua Alma se esforça por quebrar o fio de prata que a liga ao Mestre (4); sabe, ó discípulo, que a tua Alma é da terra.

Quando ao tumulto do mundo a tua Alma (5) que desabrocha dá ouvidos; quando à voz clamorosa da grande ilusão (6) a tua Alma responde; quando se assusta ao ver as lágrimas quentes da dor, quando a ensurdecem os gemidos da angústia, quando a Alma se retira, como a tartaruga tímida, para dentro da concha da personalidade, sabe, ó discípulo, que do seu Deus silencioso a tua Alma é um sacrário indigno.

Quando, já mais forte, a tua Alma vai saindo do seu retiro seguro; quando, deixando o sacrário protetor, estende o seu fio de prata e
avança; quando, ao contemplar a sua imagem nas ondas do espaço, ela murmura, “Isto sou eu” – declara, ó discípulo, que a tua Alma está presa nas teias da ilusão (7).

Esta terra, discípulo, é a sala da tristeza, onde existem, pelo caminho das duras provações, armadilhas para prender o teu Eu na ilusão chamada “a grande heresia” (8). Esta terra, ó discípulo ignaro, não é senão a triste entrada para aquele crepúsculo que precede o vale da verdadeira luz – essa luz que nenhum vento pode apagar, e que arde sem óleo nem pavio.

Diz a grande Lei: “Para te tornares o conhecedor da Personalidade Total (9), tens primeiro de conhecer a Personalidade”. Para chegares ao conhecimento dessa Personalidade, tens de abandonar a personalidade à não-personalidade, o ser ao não-ser, e poderás então repousar entre as asas da Grande Ave. Sim, suave é o descanso entre as asas daquilo que não nasce, nem morre, mas é o AUM (10) através de eras eternas (11). Cavalga a Ave da Vida, se queres saber (12).

Abandona a tua vida, se queres viver (13).
Três salas, ó cansado peregrino, conduzem ao fim dos trabalhos.
Três salas, ó conquistador de Mara, te trarão através de três estados (14) até ao quarto (15), e daí até aos sete mundos (16), os mundos do descanso eterno.
Se queres saber os seus nomes, escuta-os e aprende-os.
O nome da primeira sala é Ignorância – Avidya. É a sala em que viste a luz, em que vives e hás de morrer (17).
O nome da segunda sala é a Sala da Aprendizagem (18). Nela a tua Alma encontrará as flores da vida, mas debaixo de cada flor uma serpente enrolada (19).
O nome da terceira sala é Sabedoria, para além da qual se estende o mar sem praias de Akshara, a fonte indestrutível da onisciência (20) .
Se queres atravessar seguramente a primeira sala, que o teu espírito não tome os fogos da luxúria que ali ardem pela luz do sol da vida.
Se queres atravessar seguramente a segunda, não pares a aspirar o perfume das suas flores embriagantes. Se queres ver-te livre das peias
cármicas, não procures o teu Guru nessas regiões mayávicas.
Os sábios não se demoram nas regiões de prazer dos sentidos.
Os sábios não dão ouvidos às vozes musicais da ilusão.

Procura aquele, que te dará o ser (21), na Sala da Sabedoria, a sala que está para além, onde todas as sombras são desconhecidas e onde a luz da verdade brilha como uma glória imorredoura.

Aquilo que é incriado está dentro de ti, discípulo, assim como está naquela sala. Se queres possuí-lo, e unir as duas coisas, tens de despir os teus negros trajes de ilusão. Abafa a voz da carne, não deixes que qualquer imagem dos sentidos se entreponha entre a sua luz e a tua, para que assim as duas se fundam em uma. E, tendo aprendido a tua Ajnana (22), abandona a Sala da Aprendizagem. Essa sala é perigosa pela sua beleza pérfida, e só é precisa para a tua provação. Acautela-te Lanu, não vá a tua Alma, entontecida pelo brilho ilusório, demorar-se e enredar-se na sua luz enganadora.

Esta luz brilha na jóia do grande enganador (Mara) (23).

Enfeitiça os sentidos, cega o espírito e deixa o descuidado naufragado e sozinho.

A borboleta atraída para a chama da tua lâmpada noturna está condenada a ficar morta no azeite. A alma incauta, que não pode defrontar-se com o demônio escarninho da ilusão, voltará ao mundo escrava de Mara.

Olha as hostes das Almas. Vê como elas pairam sobre o mar tempestuoso da vida humana, e como, exaustas, sangrando, de asas quebradas, caem, uma após outra, nas ondas encapeladas. Batidas pelos ventos ferozes, perseguidas pelos vendavais, são arrastadas para os sorvedouros e somem-se pelo primeiro grande vértice que encontram.

Se, passando pela Sala da Sabedoria, queres chegar ao vale da felicidade, fecha, discípulo, os teus sentidos à grande e cruel heresia da separação, que te afasta dos outros.

Que aquilo que em ti é de origem divina não se separe, engolfando-se no mar de Maya (24), do Pai Universal (a Alma), mas que o Poder de Fogo (25) se retire para a câmara interior, a câmara do coração (26), e o domicílio da Mãe do Mundo (27).

Então do coração esse poder subirá até à sexta região, à região média, ao lugar entre os teus olhos, quando se toma a respiração da Alma-Única, a voz que enche tudo, a voz do seu Mestre.

É só então que te podes tornar um “que anda nos céus” (28), que pisa os ventos por cima das ondas, cujo passo não toca nas águas.

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* NOTAS

1 . A palavra páli Iddhi eqüivale ao Siddhis sânscrito, as faculdades “psíquicas” os poderes anormais do homem. Há duas espécies de Siddhis – um grupo que compreende as energias inferiores, grosseiras, “psíquicas” e mentais, ao passo que o outro exige o mais alto cultivo das capacidades espirituais. Diz Krishna no Shrimad Bhagavat: “Aquele que está ocupado na execução da Ioga, que venceu os seus sentidos e concentrou o seu espírito em mim (Krishna) – a tais iogues como esse estão todos os Siddhis prontos a servir.”
2. A voz sem som, ou a “voz do silêncio”. Literalmente, isto devia talvez traduzir-se “voz no som espiritual”, visto que Nada é o equivalente sânscrito do termo Senzar.
3. Dharana é a concentração intensa e perfeita do espírito sobre qualquer objeto interior, acompanhada da abstração completa de tudo quanto pertença ao universo exterior, ou mundo dos sentidos.
4 . O “grande Mestre” é o termo que os chelas empregam para designar a Personalidade Superior. Equivale ao Avalokiteshvara, e é o mesmo que o Adi-Buda dos ocultistas do budismo, que o Atmandos Brâmanes, e que o Christos dos antigos Gnósticos.
5. “Alma” é aqui empregado para designar o Eu ou Manas humano, a que na nossa oculta divisão setenária se chama a Alma humana, para distingui-la
das Almas espirituais e animais.
6 . Maha-Maya, a grande ilusão, o universo objetivo. Voltar .
7. Sakkayaditthi, a ilusão da personalidade.
8. Attavada, a heresia da crença na Alma, ou antes, na separação da Alma ou Personalidade do Ser universal, uno e infinito.
9. O Tattvajnani é o conhecedor ou discriminador dos princípios na natureza e no homem; e Atmajnani é o conhecedor de Atman ou da Personalidade Única universal.
10 . Kala Hamsa, a ave ou cisne. Diz o Nadavindupanishat (Rig Veda) traduzido pela Sociedade Teosófica de Kumbakonam – “Considera-se a sílaba A como a asa direita da ave Amsa, U a asa esquerda, M a cauda, e o Ardhamatra (meiometro) diz-se ser a sua cabeça”.
11. A eternidade tem para os orientais um sentido diverso do que tem para nós. Representa em geral os 96 anos ou idade de Brama, a duração de um Mahakalpa, ou seja, um período de 311.040.000.000.000 anos. Voltar .
12. Diz o citado Nadavindu, “Um iogue que cavalga o Hamsa (assim contempla sobre o AUM) não é afetado por influências cármicas ou efeitos de pecados”.
13. Abandona a vida da personalidade física se queres viver em Espírito.
14. Os três estados de consciência, que são: Jagrat, o de vigília; Svapna, o de sonho; e Sushupti, o estado de sono profundo. Estas três condições iogues conduzem ao quarto, que é –
15. O Turiya, o que está além do estado do sono sem sonhos, um estado de alta consciência espiritual.
16. Alguns místicos orientais indicam sete planos do ser, os sete Lokas ou mundos espirituais dentro do corpo de Kala Hamsa, o cisne fora do tempo e do espaço, conversível em o cisne dentro do tempo, quando se torna Brama em vez de Braman.
17. O mundo fenomênico só dos sentidos e da consciência terrena.
18. A sala da aprendizagem da época da provação.
19. A região astral, o mundo psíquico das percepções super-sensuais e das visões ilusórias – o mundo dos médiuns. É a grande “serpente astral” de Éliphas Lévi. Nenhuma flor colhida nesse mundo foi alguma vez trazida para a terra sem que trouxesse a sua serpente enroscada na haste. É o mundo da grande ilusão.
20. A região da plena consciência espiritual, para além da qual já não há perigo para quem lá chegou.
21. Ao Iniciado, que conduz o discípulo, pelos conhecimentos que lhe ministra, à sua segunda nascença, ou nascença espiritual, chama-se o pai, Guru ou Mestre.
22. Ajnana é a ignorância ou não-sabedoria, o contrário do conhecimento,
Jnana.
23. Mara é, nas religiões exotéricas, um demônio, um Asura, mas na filosofia exotérica é a personificação da tentação pelos vícios humanos; traduzido literalmente, quer dizer “aquilo que mata” a alma. É representado como um rei (dos Maras) com uma coroa onde brilha uma jóia de tal fulgor que cega aqueles que para ela olham, e esse fulgor representa, é claro, a fascinação que o vício exerce sobre certas naturezas.
24. Ilusão.
25. O “poder de fogo” é Kundalini.
26. A câmara interior do coração, chamada em sânscrito Brahma-Pura.
27. O “Poder” e a “Mãe do Mundo” são nomes dados a Kundalini – um dos poderes místicos iogues. É o Budi considerado como princípio ativo e não passivo (o que ele em geral é quando o consideramos como simples veículo ou cofre do espírito supremo, Atman). É força eletro-espiritual, o poder criador que, quando chamado à agir, pode tão facilmente matar como criar.

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23 Comments

  1. says: Juçara Andrade dos Santos
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