“A incapacidade de parar é uma forma de depressão”: Nilton Bonder e a depressão acelerada do mundo

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Não é comum ver a aceleração psicológica do mundo, ou melhor dizendo, das pessoas que fazem o mundo, como algo depressivo, mas o rabino brasileiro Nilton Bonder vê. Num texto intitulado “Os domingos precisam de feriados“, Bonder faz uma importante reflexão sobre a pausa, mostrando como ela faz parte da natureza – “a noite é pausa, o inverno é pausa, (…)” – e como pressupostos da cultura vigente que valoriza a aceleração e ocupação do tempo (como a conhecida crença: “quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante”) estão aloprando as pessoas e a vida que há nelas.

Cuidado com a esterilidade de uma vida ocupada demais“, diz uma frase atribuída a Sócrates que circula no “território livre da Internet”. Bonder diz que, para o mundo (ou melhor, e de novo, para as pessoas que fazem o mundo, ou seja, nós), “funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente”, e observa que isso se estende para além dos dias chamados “úteis”, percebendo que “a pergunta que as pessoas se fazem no descanso é ‘o que vamos fazer hoje?’ – já marcada pela ansiedade“.

A pausa, de certa maneira, não é só um mero intervalo entre ocupações (apesar de ser isso também), mas um resgate do momento real e uma cura da escravidão inconsciente ao tempo psicológico. “Toda negatividade ;e causada pelo acúmulo de tempo psicológico e pela negação do presente”, diz o autor Eckhart Tolle no seu clássico livro O Poder do Agora. “Desconforto, ansiedade, tensão, estresse, preocupação – todas formas de medo – são causados por muito futuro, e presença insuficiente. Culpa, arrependimento, ressentimento, tristeza e amargura, são todas formas de não-perdão causadas por tempo passado demais, e presença insuficiente”.

Bonder diz que “A prática espiritual deste milênio será viver as pausas”. Tolle certamente diria que é viver em presença.

Boa leitura.

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OS DOMINGOS PRECISAM DE FERIADOS
Por Nilton Bonder

Toda sexta-feira à noite começa o shabat para a tradição judaica. Shabat é o conceito que propõe descanso ao final do ciclo semanal de produção, inspirado no descanso divino, no sétimo dia da Criação. Muito além de uma proposta trabalhista, entendemos a pausa como fundamental para a saúde de tudo o que é vivo. A noite é pausa, o inverno é pausa, mesmo a morte é pausa. Onde não há pausa, a vida lentamente se extingue.

Para um mundo no qual funcionar 24 horas por dia parece não ser suficiente, onde o meio ambiente e a terra imploram por uma folga, onde nós mesmos não suportamos mais a falta de tempo, descansar se torna uma necessidade do planeta. Hoje, o tempo de ‘pausa’ é preenchido por diversão e alienação. Lazer não é feito de descanso, mas de ocupações ‘para não nos ocuparmos’. A própria palavra entretenimento indica o desejo de não parar. E a incapacidade de parar é uma forma de depressão. O mundo está deprimido e a indústria do entretenimento cresce nessas condições. Nossas cidades se parecem cada vez mais com a Disneylândia. Longas filas para aproveitar experiências pouco interativas. Fim de dia com gosto de vazio. Um divertido que não é nem bom nem ruim. Dia pronto para ser esquecido, não fossem as fotos e a memória de uma expectativa frustrada que ninguém revela para não dar o gostinho ao próximo.

Entramos no milênio num mundo que é um grande shopping. A Internet e a televisão não dormem. Não há mais insônia solitária; solitário é quem dorme. As bolsas do Ocidente e do Oriente se revezam fazendo do ganhar e perder, das informações e dos rumores, atividade incessante. A CNN inventou um tempo linear que só pode parar no fim. Mas as paradas estão por toda a caminhada e por todo o processo. Sem acostamento, a vida parece fluir mais rápida e eficiente, mas ao custo fóbico de uma paisagem que passa. O futuro é tão rápido que se confunde com o presente. As montanhas estão com olheiras, os rios precisam de um bom banho, as cidades de uma cochilada, o mar de umas férias, o domingo de um feriado.

Nossos namorados querem ‘ficar’, trocando o ‘ser’ pelo ‘estar’. Saímos da escravidão do século XIX para o leasing do século XXI – um dia seremos nossos? Quem tem tempo não é sério, quem não tem tempo é importante. Nunca fizemos tanto e realizamos tão pouco. Nunca tantos fizeram tanto por tão poucos.

Parar não é interromper. Muitas vezes continuar é que é uma interrupção. O dia de não trabalhar não é o dia de se distrair – literalmente, ficar desatento. É um dia de atenção, de ser atencioso consigo e com sua vida. A pergunta que as pessoas se fazem no descanso é ‘o que vamos fazer hoje?’ – já marcada pela ansiedade. E sonhamos com uma longevidade de 120 anos, quando não sabemos o que fazer numa tarde de domingo.

Quem ganha tempo, por definição, perde. Quem mata tempo, fere-se mortalmente. É este o grande ‘radical livre’ que envelhece nossa alegria – o sonho de fazer do tempo uma mercadoria. Em tempos de novo milênio, vamos resgatar coisas que são milenares. A pausa é que traz a surpresa e não o que vem depois. A pausa é que dá sentido à caminhada. A prática espiritual deste milênio será viver as pausas. Não haverá maior sábio do que aquele que souber quando algo terminou e quando algo vai começar. Afinal, por que o Criador descansou? Talvez porque, mais difícil do que iniciar um processo do nada, seja dá-lo como concluído.

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Compartilhado por Victor Stirnimann

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58 Comments

  1. says: Fausto S.L

    Excelente texto. Um elixir para os que perdem dia a dia o contato com o espirito, a sensibilidade de ser humano. Um refletir, um atualizar, mesmo para aqueles que ja o possuem. Maravilha.

  2. says: Nathalia

    Era o que eu realmente precisava ler. Quantas e quantas pessoas esquecem da pausa ou até mesmo escondem a vontade de parar um pouco que seja. Pois todos atualmente estão julgando “matar o tempo” como perder tempo, deixar de fazer algo, ser preguiçoso, etc
    Seria cômico se não fosse tão trágico. Ninguém mais para. Para ser alguém bem sucedido, na visão dos outros (se basear na visão dos outros já é um erro), é preciso estar com seu tempo 100% ocupado. Fazer duas graduações, trabalhar e estudar, etc.
    Se existe um tempo livre é preciso preencher ele com algo, pois a vida é uma competição e não há tempo a perder. Mas é assim que todos estão perdendo seus dias e se perdendo, mas são poucos os que percebem isso.

    1. E mesmo os que percebem às vezes não saem. Acima de tudo isso, há o modo que cada um de nós opera, e isso é que vai contribuir (ou não) para uma civilização mais saudável, com pausas e presença.

      Tem um livro importante do filósofo alemão Theodore Adorno, Cultura de Massa e Indústrial Cultural, que trata de maneira muito interessante desse tema do “tempo livre”, como a própria existência dele está dentro de uma lógica de sistema de produção desumana. Vou rever para trazer algo para cá.

      Obrigado, Nathalia.

  3. says: Iolá Gomes Ferreira

    eu me interesso muito pelo assunto porque acho que vivo no meio de uma depressão muito grande, e não consigo realmente parar, para fazer um tratamento, fujo o tempo inteiro.Vivo em meio há um passado remoto e não vivo o presente.

  4. says: Letícia

    Oi Nando adorei seu texto, tenho sofrido muito com essa falta de pausa. Sinto que meu corpo pede por essa pausa, porém quando paro sinto um sentimento de culpa, pois à tanto a fazer… Não tenho conseguido relaxar nos meus momentos de pausa!

  5. says: Carmen Valladares

    Bacana esse assunto. Enseja uma reflexão profunda e difícil. Somos o tempo inteiro cobrados pelas pessoas a respeito do que estamos fazendo. Depois que eu me aposentei (ja faz 6 anos!), até hoje, a pergunta que mais me fazem é essa: “E tu não estas fazendo nada?”. Fico muito irritada com esse questionamento das pessoas. E se eu respondo, “estou vivendo a vida”, ficam achando que eu sou uma desocupada. Claro que eu já cheguei num estágio, que pouco me importa o que pensam de mim, porque eu sou a dona da minha vida e livre. Mas que chateia essa curiosidade das pessoas, chateia.

    1. says: Irene da Rocha Eto

      Carmem, eu terminei meus estudos depois que casei, então não parei até aposentar. Eu trabalhava de manhã a tarde e a noite. Eu agora estou aposentada, fico um pouco em SP e praia, e as pessoas ficam perguntando se eu não me canso de não fazer nada rs. Eu respondo, que já fiz o suficiente para meu conforto. Acho que é inveja!!!

  6. says: denise

    Gostei muito do texto! ! Reflexivo e bastante positivo. Todos deveriam parar e no mínimo ler textos que os levem a enxergar a vida em tempo presente.

  7. says: Celina

    Olá, belo texto..inspirador!
    Sou instrutora de yoga e a maioria dos que buscam uma prática de yoga ou meditação, estão justamente procurando algo neste sentido… A maioria não sabe o quê busca ao certo… Mas ao iniciarem a prática vão percebendo que faltava aquietamento, pausa para sentir as coisas simples… Perceber a vida, o momento, a respiração, o corpo… E muitos surpreendem-se com a paz…como se fosse algo mágico, mas no fundo é apenas o estado natural que todo ser humano deveria sentir…boa parte do tempo…

  8. says: Alice Vicente

    Um assunto em que nunca tinha pensado. Realmente é verdade, esta necessidade que a pessoa sente para preencher o seu tempo livre, com medo de ficar parada, ou na dita cuja “pausa”, onde terá tempo para pensar no quanto o seu tempo está a ser desperdiçado por não se estar a fazer nada. Algo que sinto constantemente. Se fico parada durante muito tempo, sinto-me ansiosa e frustrada. Uma bela contradição que relata a vida de muitas pessoas. Obrigada por me guiar a este assunto. Certamente irá afetar a minha vida a partir deste momento :)

    1. Obrigado, Alice.

      Geralmente quando o tema é sobre algo “geral”, que “todo mundo faz”, sinto uma necessidade de redirecionar esse impulso que temos (de avaliar a sociedade ou o mundo) e irmos para nós mesmos, vendo o que a pressa ou a pausa estão em nós, em mim. Mas você chama a atenção para uma dimensão que existe e é um campo que precisamos cuidar também, que é a vibração geral de onde estamos. Há uma espécie de transe coletivo pela aceleração e amontoamento de compromissos, como disse o Bonder, isso está na cultura, nos valores que são transmitidos, passa através dos diálogos, das decisões, dos desejos. A inconsciência alimenta e retroalimenta esse transe. Se acordamos do nosso próprio transe e inconsciência individuais, então podemos colaborar para que o coletivo sofre esse efeito, e então o coletivo (pela cultura, relacionamentos, etc) aja beneficamente nos próximos individuais que chegarão a esse coletivo.

      NamasTe!

  9. says: brunna

    Não sou de comentar em nada na internet, porém esse texto me fez passar por uma grande reflexão. Eu precisava ler esse texto, agradeço imensamente por ele. Gratidão!

    1. Obrigado por escrever, Brunna. Fiquei curioso pela tua grande reflexão, mas mais que isso, feliz que ajudou com ela. Se quiser compartilhar tua reflexão, pode contribuir para mais gente.

      PS: Esse post não deixa de ser uma reflexão compartilhada.

      Gratidão.

  10. says: Silvana

    Olá, exatamente este é o momento. Ou continua máquina ou aprende se a expressar o tempo como parte do bem do necessário para o equilíbrio da humanidade. E este agora é o meu tempo de parar de ser máquina. Seu texto é 10.

  11. says: Denise

    Olá, ,muito boa essa reflexão, há algum tempo já introduzi PAUSAS no meu dia,na semana…e é interessantíssimo, ,ficamos muito melhores “Humanamente”….Obrigada por Compartilhar…Abracos

  12. says: Suely

    Obrigada por este texto ,não tinha visto nada semelhante,
    só ouvi falar do ócio criativo, no meu inconsciente
    já trabalhava essa ideia, mas não conseguia montar o pensamento
    e colocar para fora ,faço análise e estava nesse buscar , entender o que
    estava acontecendo comigo.

  13. says: regina

    Olá, Nando.
    Gostei muito do seu texto.
    Vejo que as pessoas sentem-se na obrigação de estar sempre fazendo alguma coisa. Tenho achado a vida estressante, barulhenta e isso me incomoda pois sinto a necessidade do silêncio, do estar comigo e esse excesso de informações e atividades acaba nos consumindo, se permitirmos. Sou aposentada e sempre há alguém querendo me arrumar o que fazer. O ócio é bom, a gente se descobre, desperta a criatividade porém incomoda muita gente que não consegue viver um pouco nele. Namastê!!

  14. says: Ana

    Esse texto foi um presente de Natal antecipado.
    Vou tê-lo sempre por perto para lembrar-me da importância das pausas para estar com a família e amigos ou não fazer nada. Me permitir descansar numa rede sem me sentir culpada, enfim, viver.
    Parabéns pe?o texto, Obrigada pelo presente.

  15. says: Marcia Ribeiro Borin

    Amei o texto!
    Muito obrigada, estava precisando ler isto.
    As vezes não tenho tempo nem de respirar por inteiro, e com isso vai nos afetando emocionalmente e fisicamente.
    Pausa urgente para não adoecermos.

  16. Uau, uau, uau! Que alegria poder ter contato com esse texto. Um texto de 2017, que só li agora, pq assim deveria de ser.
    Registro esse comentário em meio a pandemia de coronavírus e estamos sendo forçados pela Natureza à uma pausa mundia.
    Bendita crise que liberta!
    Namastê!

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