Meditação, coragem verdadeira e coração aberto: lições do caminho do guerreiro de Chögyam Trungpa

“Quando acordamos nosso coração dessa maneira, para nossa surpresa, descobrimos que ele está vazio. Temos a impressão de estar olhando para o espaço sideral. O que somos nós? Quem somos nós? Onde está nosso coração? Se olharmos com atenção, nada veremos de tangível ou sólido. Claro, é possível encontrar algo muito sólido se tivermos rancor contra alguém ou se estivermos possessivamente apaixonados. Mas esse não é um coração desperto. Se procurarmos o coração desperto, se colocamos a mão no peito para senti-lo, nada encontramos – a não ser ternura. Sentimo-nos doloridos e ternos, e se abrirmos os olhos para o resto do mundo, reconheceremos em nós uma profunda tristeza. Esse tipo de tristeza não vem de termos sido maltratados. Não estamos tristes porque nos insultaram ou porque nos consideramos pobres. Essa experiência de tristeza é incondicionada. Ela se manifesta porque nosso coração está absolutamente exposto. Nenhuma pele ou tecido o recobre – é pura carne viva. Mesmo se um pequeno mosquito pousasse nele, nós nos sentiríamos profundamente tocados. Nossa experiência é crua, terna e absolutamente pessoal.

O autêntico coração da tristeza provém da sensação de que o nosso inexistente coração está cheio. Derramaríamos o sangue do nosso coração, daríamos nosso coração aos outros. Para o guerreiro, é a experiência do coração triste e terno que dá origem ao destemor. Convencionalmente “ser destemido” significa não ter medo ou, se alguém lhe der um soco, você revidar. Entretanto, não estamos falando do destemor desse nível das brigas de rua. O verdadeiro destemor é produto da ternura. Surge ao deixar o mundo tocar nosso coração, nosso belo e despido coração. Ao nos dispormos a nos abrir, sem resistência ou timidez, e a encarar o mundo. A nos dispor a compartilhar nosso coração com todos.”
~ Chögyam Trungpa Rinpoche, em “A Trilha Sagrada do Guerreiro” (Shambala)

Uma ilusão comum no caminho “espiritual” é achar que quanto mais evoluímos ou chegamos perto da verdade e da liberdade, mais estaríamos protegidos da tristeza, da violência ou das experiências negativas (por assim dizer). Mas o mestre budista Chögyam Trungpa Rinpoche (1939-1987), venerável destruidor de ilusões, conecta a conhecida virtude da coragem não à capacidade de revidar ou a qualquer outro sentido de “brigas de rua”, mas à capacidade de se abrir, de abrir o coração e viver com ele aberto, em “pura carne viva”. De certa maneira, seja como processo ou como resultado, muitas das meditações, terapias e educações profundas caminham na direção da aceitação da inevitável vulnerabilidade humana, e, também de uma maneira relativamente evidente, muitos de nossos problemas vem da evitação e do medo dessa abertura e do viver com o coração despido. O trecho acima é a tradução livre de um trecho do belo livro “A Trilha Sagrada do Guerreiro” (The Sacred Path of Warrior, 1984) , pág 32, capítulo 3, intitulado “O Genuíno Coração da Tristeza” (The Genuine Heart of Sadness).

A expressão “dessa maneira” contida na primeira frase do trecho se refere à prática da meditação, ao acordar do coração e à nudez dele quando se pratica a meditação. No coração desperto, segundo Chögyam, está a “bondade básica” do ser humano. Através da meditação, se desperta o coração.

PS: Coincidentemente esse fim-de-semana o sobrinho de um colega foi covardemente espancado numa festa (!) da USP e, vendo a foto do rosto agredido postada numa rede social, lembrei de quando Chögyam cita o tipo de coragem da “briga de rua” e fiquei imaginando o quanto estamos longe desse tipo de abertura e coragem verdadeira que ele fala. Mas aí lembro do vídeo publicado aqui ontem, “Desistindo de Sua Agressão” (Surredering Your Aggression, 1975), em que Chögyam Trungpa fala do medo de doar-se, do medo de abrir-se, e citava as fantasias pessimistas e o hábito de “supor” que a mente usar para valorizar o medo e o isolamento, e aí desisto do “ficar imaginando”.

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7 Comments

  1. says: Áurea

    “Uma ilusão comum no caminho “espiritual” é achar que quanto mais evoluímos ou chegamos perto da verdade e da liberdade, mais estaríamos protegidos da tristeza, da violência ou das experiências negativas (por assim dizer).”
    Acredito que, quanto mais evoluímos, mais compreendemos com abrangência os sentimentos e experiências que a vida nos trás para nos plenificar (sejam eles considerados positivos ou negativos), até que consigamos transcende- los.

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