“É absolutamente seguro morrer. É como tirar um sapato apertado”: Ram Dass, Emmanuel e nosso medo da morte

Ram Dass está certo? Quem não gostaria que ele estivesse?

O texto abaixo é um artigo que o conhecido autor e psicólogo Ram Dass, ou Richard Alpert, escreve sobre a aceitação da morte e a certeza de que ela é apenas uma transição entre estados de Ser – e que o que morre (e teme) é apenas o ego. Seguidor do grande sábio indiano Ramana Maharshi (1879-1950) e discípulo de Neem Karoli Baba (1900?-1973), Ram Dass cita seus mestres, seu grande amigo Emmanuel (de quem vem a expressão do título “é como tirar um sapato apartado“) e o Livro Tibetano Dos Mortos como referências para afirmar que a morte é apenas um estágio, descrevendo sua transformação de um psicólogo cético de Harvard em um servo amoroso de pessoas no leito da morte — passando por suas experiências com químicos psicodélicos nos Anos 70. Mas além de citar suas referências, cita sua própria experiência e conta como atravessou o terreno da negação e da crença, em direção à sabedoria.

O texto abaixo é uma tradução livre do artigo “Dying Is Absolutely Safe” (Morrer é Absolutamente Seguro), que está publicado em seu site, ramdass.org.

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É Absolutamente Seguro Morrer” [TRECHO] Por Ram Dass

Há uma tumba em Ashby, Massachusetts, que diz “Lembre-se amigo, conforme você passa por aqui, como você é agora, eu também fui. Como eu sou agora, você deve ser. Prepare-se para me seguir”.

Alguma coisa aconteceu comigo como resultudo de circular através de muitas dimensões da consciência nos últimos cinquenta anos que mudou minha atitude em relação à morte. Muito do medo da morte se foi de mim. Sou uma pessoa que na verdade gosta de estar com pessoas quando elas estão morrendo É uma benção incrível para mim. Na manhã, seu eu sei que estarei com uma pessoa dessas, fico absolutamente encantado porque sei que vou ter uma oportunidade de estar na presença da Verdade.

Em nossa cultura, agora está se tornando aceitável morrer. Por muitas décadas, a morte era mantida atrás de portas fechadas. Mas agora estamos permitindo que ela saia. Tendo crescido nessa cultura, os primeiros poucos meses que passei na Índia nos Anos 60 foram uma experiência e tanto.  Lá, quando alguém morre, eles colocam sobre uma maca, enrolam em um lençol e carregam pelas estradas até o recinto de cremação enquanto um mantra é cantado. A morte está aberta para todos verem. O corpo está la. Não está numa caixa. Não está escondido. E porque a Índia tem uma cultura de famílias estendidas, a maioria morre em casa. Então a maioria das pessoas, conforme vão crescendo, acabam vivendo na presença de alguém que está morrendo. Eles não abandonam o lugar e se escondem disso como fazemos no Ocidente.

Eu certamente fui uma das pessoas nesta cultura que se esconderam da morte. Mas, ao longo das últimas décadas, mudei radicalemente. A primeira mudança veio como resultado de minhas experiências com químicos psicodélicos. Entrei em contato com uma parte do meu ser que eu não tinha conhecido em minha vida adulta. Eu era um psicólogo ocidental, professor em Harvard e um filosófo materialista. O que eu experimentei através dos psicotrópicos foi extremamente confuso, porque não havia nada no meu passado que me preparou para lidar com outra parte do meu ser. Depois que comecei a me sentir como um “Ser da Consciência” – em vez de um psicólogo, ou de um conglomerado de papéis sociais, a experiência mudou profundamente a natureza da minha vida. Mudou quem eu pensava que era.

Antes da minha primeira experiência com drogas psicodélicas, eu me identificava com o que morre – o ego. O ego é quem eu penso que sou. Agora, eu me identifico muito mais com quem eu realmente sou – a Alma. Enquanto você se identificar com aquilo que morre, sempre haverá o medo da morte. O que o nosso ego teme é a cessação da sua própria existência. Embora eu não sabia que forma eu tomaria após a morte – percebi que a essência do meu ser – e a essência da minha consciência – está além da morte.

O mais interessante para mim na época foi que minha primeira experiência com psicodélicos foi absolutamente indescritível. Eu não tinha conceitos para aplicar o que eu estava descobrindo do meu próprio ser. Aldous Huxley me deu um exemplar de O Livro Tibetano dos Mortos. Ao lê-lo, fiquei surpreso ao encontrar  descrições lúcidas e claramente articuladas das mesmas experiências que eu estava tendo com psicodélicos. Foi muito confuso para mim, porque O Livro Tibetano dos Mortos tem 2.500 anos de idade. Eu pensava que, em 1961, eu estava na vanguarda do desconhecido. Mas aqui estava um texto antigo que revelava que os budistas tibetanos já sabiam – há 2500 anos – tudo o que eu tinha acabado de aprender.

O Livro Tibetano dos Mortos foi usado por lamas budistas tibetanos para ler aos seus colegas lamas enquanto eles estavam morrendo, e por 49 dias após suas mortes. Tim Leary, Ralph Metzner e eu começamos a ver o livro em termos metafóricos, como a história da morte e renascimento psicológico, apesar de ter sido originalmente concebido como um guia através do processo da morte física e do renascimento. Agora eu acho que a idéia de morrer e nascer para a Verdade, ou a Sabedoria, ou Espírito, é realmente a essência do assunto quando falamos de morte. Quando você livrar-se da identificação sólida com seu corpo, você começa a ter o espaço que permitir a possibilidade da morte ser uma parte do processo da vida – e não o fim da vida. Eu sinto isso muito profundamente.

As pessoas me perguntam: “Você acredita que existe uma continuidade após a morte?” E eu digo: “Eu não acredito. É assim. “Isso ofende meus amigos científicos ao último nível. Mas a crença é algo que você segura com seu intelecto. Minha fé na continuidade da vida tem ido muito além do intelecto. A crença é um problema porque está enraizada na mente, e no processo de morte, a mente se desintegra. A fé, a consciência e a presença existem todas além da mente pensante.

Eu tenho um amigo chamado Emmanuel. Alguns de vocês já o conhecem através de livros dele. Ele é um espectro, um ser de luz que já deixou seu corpo. Emmanuel compartilha um monte de grandes sabedorias. Ele é como um tio para mim. Uma vez eu disse a ele: “Emmanuel, muitas vezes tenho que lidar com o medo da morte nesta cultura. O que devo dizer às pessoas sobre a morte? “E Emmanuel disse:” Diga-lhes que é absolutamente seguro! “Ele disse:” É como tirar um sapato apertado”.

No passado, o que procurei fazer em parceria com Stephen e Ondrea Levine, Dale Borglum e Bodhi Be (um amigo meu Sufi) foi a criação de espaço em torno da morte. Tivemos diversos programas, como o “Atendimento aos Que Estão Morrendo”, onde as pessoas podiam ligar e ter uma espécie de conversa de travesseiro com outras pessoas que queriam ajudá-las a ficarem conscientes durante o processo de morrer. No início dos anos oitenta, nós também tínhamos um Centro Para Morrer no Novo México (EUA). Minha ideia era que eu sabia que estar com as pessoas que estavam morrendo iria me ajudar a lidar com o meu próprio medo da morte nesta vida.

Nas tradições budistas Theravada, eles mandam monges para passar a noite no cemitério, onde os corpos são jogados fora descobertos para os pássaros comerem. Assim, os monges se sentam ao lado de cadáveres inchados, infestados de moscas, e seus esqueletos, e têm a oportunidade de estar plenamente consciente de todos os processos da natureza. Eles têm a oportunidade de assistir ao seu próprio nojo e ódio, e seu medo. Eles têm a chance de ver a terrível verdade daquele “como estou agora, então você deve estar” realmente significa. Vendo a forma como o corpo se decompõe, e meditando sobre a decadência, isso abre a consciência de que há um lugar em que você não tem nada a ver com o corpo – nem com a decadência.

Essa combinação me levou, já em 1963, a começar a trabalhar com pessoas morrendo e a estar disponível para elas. Não sou médico. Não sou enfermeiro. Não sou advogado. Não sou sacerdote ordenado. Mas o que eu posso oferecer a outro ser humano é a presença de um ambiente sagrado, espaçoso. E posso oferecer-lhes amor. Nesse espaço de amor, eles têm a oportunidade de morrer como eles precisam morrer. Não tenho o direito moral para definir como uma outra pessoa deveria morrer. Cada indivíduo tem seu próprio karma – seu próprio material para trabalhar. Não é meu trabalho dizer: “Você deve morrer bem” ou “você deve morrer desta ou daquela maneira.” Não tenho nenhuma idéia de como outra pessoa deva morrer.

Quando a minha mãe biológica estava morrendo em um hospital de Boston em 1966, eu via todas as pessoas entrando em seu quarto. Todos os médicos e parentes diziam: “Você está olhando melhor, você está indo bem.” E então eles saiam da sala e diziam: “Ela não vai durar uma semana.” Pensei quão bizarro era que enquanti um ser humano estava passando por uma das transições mais profundas em sua vida, e ter todas aqueles que ela conhece, ama e confiança, mentindo pra ela.

Você pode sentir a dor disso? Ninguém era direto com minha mãe porque estava todo mundo muito assustado. Até mesmo o rabino. Todos. Ela e eu conversamos sobre isso e ela disse: “O que você acha que é a morte?” E eu disse: “Não sei, mãe. Mas eu olho pra você e você é minha amiga, e parece que você está em um prédio que está queimando, mas você ainda está aqui. Eu suspeito que, quando o edifício queimar totalmente, ele vai embora, mas você ainda vai estar aqui”. Então minha mãe e eu só nos encontrávamos naqueke espaço.

Com Phyllis, minha madrasta, eu estava mais aberto, e ela podia perguntar o que quisesse. Não disse: “Agora, deixe-me aconselhá-lo sobre a morte”, porque ela não teria aceitado isso. Mas então veio o momento em que ela soltou, ela se rendeu, foi como assistir a um ovo quebrando e vendo uma radiante beleza surgir, e ela era clara, e no presente, e alegre. Foi um Ser que sempre, em algum nível, ela sabia que era. Mas ela tinha estado muito ocupada toda sua vida adulta para reconhecê-lo. Agora ela se abriu pra este belo Ser na essência de quem ela era, e simplesmente se deleitou com seu brilho.

Naquele momento, ela entrou em um outro plano da consciência, onde ela e eu estávamos completamente juntos, apenas existindo. Todo o processo de morrer eram apenas momentos de fenômenos que estavam acontecendo. Mas quando ela se rendeu, ela não estava mais ocupada morrendo, ela estava apenas sendo… e a morte estava acontecendo.

No seu último momento, ela disse: “Richard, me coloque sentada.” Então eu a sentei e colocar suas pernas sobre a borda da cama. O corpo dela estava caindo pra  frente, então coloquei minha mão em seu peito e seu corpo foi pra trás. Então coloquei minha mão em suas costas. Sua cabeça estava meio pendurada, então  coloquei minha cabeça junto da cabeça dela. Estávamos apenas sentados juntos lá. Ela respirou três vezes, três respirações muito profundas, e se foi. Agora, se você ler o livro tibetano dos mortos, vai ver que o caminho que os lamas conscientes deixam seus corpos é sentando-se, fazendo três respirações profundas e, em seguida, indo embora.

Então, quem foi minha madrasta? Como é que ela sabe como fazer isso?

Ramana Maharshi foi um grande santo indiano. Quando estava morrendo de câncer, seus devotos disseram: “Vamos tratá-lo.” E Ramana Maharshi disse: “Não, é hora de deixar este corpo”. Seus devotos começaram a chorar. Rogaram-lhe, “Bhagwan, não nos deixe, não nos deixe!” Ele olhou-lhes e às suas confusões e disse: “Não sejam bobos. Onde eu poderia ir? “Você sabe, é quase como se ele estivesse dizendo:” Não faça tanto barulho. Eu só estou vendendo o carro velho da família.”

Esses corpos em que vivemos, e o ego que se identifica com ele, são como o velho carro da família. Eles são entidades funcionais em que a nossa alma viaja através da nossa encarnação. Mas quando eles estão usados??, eles morrem. A coisa mais graciosa a fazer é apenas permitir-lhes morrer em paz e, naturalmente – para “soltá-los levemente”. Por tudo isso, o que somos é Alma… e quando o corpo e o ego se forem, a Alma vai viver, porque a Alma é eterna. Eventualmente, em alguma encarnação, quando nós terminarmos nosso trabalho, nossa alma pode fundir tudo e voltar para o Uno… de volta para Deus… de volta para o Infinito. Nesse meio tempo, nossa Alma está usando corpos, egos e personalidades para trabalhar com o karma de cada encarnação.”

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12 Comments

  1. says: Nadja

    Olá,

    Gostaria de fazer uma correção aqui sobre Ram Dass, a quem tenho muito respeito pelo seu trabalho e sua devoção ao seu mestre:

    Ram Dass (Richard Alpert) é um professor espiritual e autor americano muito conhecido por sua associação com Timothy Leary quando era professor de psicologia da Universidade de Harvard. No início dos anos 60 ele viajou na Índia onde encontrou seu guru Neem Karoli Baba.

    1. Oi Nadja,

      Acrescentei a informação do Neem Karoli Baba, que ficou faltando (embora já citado em outros posts sobre Ram Dass). Foi Neem Jaroli Baba quem deu o nome Ram Dass a Richard Alpert. A data de nascimento (de Baba) é imprecisa, nem todas as fontes aceitam ser 1900 (então fica o sinal de interrogação indicando a imprecisão ali). Se você tiver informação sobre isso, por favor, me avise. Há também um conserto, ao invés de psiquiatra, psicólogo.

      PS: A referência a Sri Ramana Maharshi segue como estava, com “seguidor”, pois não consta uma “linhagem oficial” de Ramana, apesar da proximidade e devoção confessas de Ram Dass — que, entre outras coisas, narra o filme “Abide As The Self”.

      Obrigad,
      Namastê,
      Nando

  2. says: Paulo Renato

    A morte é o simbolo máximo da ilusão, da ideia limitada de ser, que é o ego. É através da ideia de finitude que nos vamos deixando estar na ilusão, que nos limitamos à ideia de um corpo e a mente que o controla. Mas o ego é apenas uma ideia, um pensamento como outro qualquer, se o procuras não o encontrarás em lugar algum, mas não acreditem porque eu o digo, façam por vocês mesmos, procurem o ego e verão que ele é apenas um pensamento.

    1. says: Gilda Vasconcelos

      Absolutamente de acordo, Paulo Renato. Revisito esta página e acrescento que, curiosamente, tal facto está muito bem reportado no livro “Um Mundo Novo” da autoria de Eckhart Tolle”.
      Namasté,
      Gilda

  3. says: cynthia

    Estar presente no momento da passagem de um irmão, na transição da vida/morte, é uma experiência muito rica, é deixar pra trás egos, medos, crenças e entrar em contato direto com a Verdade Absoluta;somos seres espirituais temporáriamente colhendo experências, no invólucro, na casca, para a seu tempo retornar…juntar-se à Chama, da qual em um determinado tempo nos distanciamos.Rico texto.
    Namastê!

  4. says: Paulo Faria

    O maravilhoso, claro, simples e límpido texto me fez lembrar um diálogo que tive com um colega durante o velório do pai de um amigo nosso. Eu pergunteiao meu amigo: “você está ouvindo o que o pai do nosso amigo está dizendo para todos os que aqui estão presentes? Ele foi rápido em me dizer que eu estava maluco, doido, desorientado,……, que eu havia perdido a lucidez e eu lhe respondi que não, que o pai do nosso amigo estava dando um recado ao mega-fone. Para não me frustrar, meu amigo me perguntou: sim, o que ele está a nos dizer? e eu disse: o pai do nosso amigo está a nos dizer o seguinte: não seja idiota, saiba que algum dia este lugar será seu.” O diálogo foi encerrado e, dias depois, ele ficou frente a um fato inesperado: antes de iniciarem uma churrascada no sítio de sua propriedade, MUITOS amigos presentes, sua jovem e bonita esposa não terminou de lhe dizer o mal que estava a sentir: caiu fulminada a seus pés.Ele teve a oportunidade de meditar sobre DUKHA mas, ainda assim, refugiou-se em distrações mundanas para permanecer vivo.

  5. says: davielymes

    a pouco mais de meio ano, venho percebido e reconhecendo a ideia de morte como uma simples passagem; como ouvi em um comentário acima, “um retorno pra casa”. Pra ser sincera, o medo que eu tinha da morte, se transformou em curiosidade.

  6. says: Gilda Vasconcelos

    Gostaria de agradecer a Nando Pereira por ter postado este excelente texto bem como a todos os intervenientes pelas suas partilhas.
    Um abraço transpessoal

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