Um esquema geral do homem segundo PD Ouspensky, o discípulo maior do filósofo místico Gurjdieff [TRECHO]

Uma das reflexões ou contemplações mais fundamentais do caminho espiritual, ou talvez a mais fundamental segundo algumas escolas de sabedoria, está na pergunta “quem sou eu?“. O grande sábio Ramana Maharshi ensinava o caminho para esta investigação, e ela também aparece em ensinamentos como o do filósofo místico armênio George Ivanovich Gurdjieff (1866-1949), conhecido por ter criado “O Quarto Caminho“, um método de despertar diferente do fakir, do monge e do yogue (referênciais aos principais métodos até sua época). Entre seus famosos aforismos e premissas do trabalho está a de que o homem é basicamente uma máquina, que está em estado adormecido e que não conhece a si mesmo, como seu discípulo, o filósofo russo Piotr Demianovitch Ouspensky tenta explicar abaixo, no que chamou de um “esquema geral do homem“.

Parte do livro “Fragmentos de Um Ensinamento Desconhecido – Em Busca do Milagroso” (1878-1947), considerado um dos livros mais importantes sobre o método e o pensamento de Gurdjieff, Ouspensky fala sobre o “eu” que acreditamos que somos e os outros “eus” que são criados momento a momento, numa confusão de identidades que ainda sim se reconhece como um só. O trecho abaixo não é auto-suficiente, necessita idealmente da leitura do capítulo completo, melhor ainda do livro completo, que traz a visão mais completa do que Ouspensky e Gurdjieff transcreveram sobre o homem. Mas, ainda assim, traz um início de reflexão importante e provocativa para qualquer um que tenha interesse no assunto.

Segue o trecho.

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FRAGMENTOS DE UM ENSINAMENTO DESCONHECIDO” [TRECHO] Por P.D. Ouspensky

Na realidade não existe unidade no homem, não existe um centro único de comando, nem um “Eu”, ou ego, permanente. Eis aqui um esquema geral do homem:

Cada pensamento, cada sentimento, cada sensação, cada desejo, cada “eu gosto” ou “eu não gosto”, é um “eu”. Esses eus” não estão ligados entre si, nem coordenados de modo algum. Cada um deles depende das mudanças de circunstâncias exteriores e das mudanças de impressões.

Tal “eu” desencadeia mecanicamente toda uma série de outros eus”. Alguns andam sempre em companhia de outros. Não existe aí, porém, nem ordem nem sistema. Alguns grupos de “eus” têm vínculos naturais entre si. Fa­laremos desses grupos mais adiante. Por enquanto, devemos tratar de compreender que as ligações de certos grupos de “eus” constituem-se unicamente de associações acidentais, recordações fortuitas ou semelhanças completamente imaginárias.

Cada um desses “eus” não representa, em dado momento, mais que uma ínfima parte de nossas funções, porém cada um deles crê representar o todo. Quando o homem diz “eu”, tem-se a impressão de que fala de si em sua totalidade, mas, na reali­dade, mesmo quando crê que isso é assim, é só um pensamento passageiro, um humor passageiro ou um desejo passageiro. Uma hora mais tarde, pode tê-lo esquecido completamente e expres­sar, com a mesma convicção, opinião, ponto de vista ou inte­resses opostos. O pior é que o homem não se lembra disso. Na maioria dos casos, dá crédito ao último “eu” que falou, en­quanto este permanece, ou seja, enquanto um novo “eu” — às vezes sem conexão alguma com o precedente — ainda não tenha expressado com mais força sua opinião ou seu desejo.

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16 Comments

  1. Gostei do texto. Mas não pude evitar refletir que, sendo a natureza humana a mesma que todos partilhamos, quem desvenda os seus segredos tem que forçosamente confluir para a mesma realidade e fazer as mesmas descobertas essenciais. Por isso é um erro achar que essas diferentes denominações, métodos ou caminhos (o yogui, o monge, o faquir, 4º caminho, etc.) podem apresentar propostas fundamentalmente diferentes se realmente pretendem despertar e libertar o ser humano. Às vezes apenas confunde e atrapalha quem procura ajuda e esclarecimento. Se realmente é o mesmo ser humano que se procura mapear e libertar, que diferença pode haver nas verdades apontadas?! No entanto, frequentemente, essas diferentes propostas apresentam-se como se cada uma delas tivesse a posse exclusiva das chaves do paraíso! Tantos pretensos mestres, tantos diferentes métodos e caminhos, tantas diferentes denominações,…!! Talvez que esta infindável peregrinação por livros e mestres, seja apenas um adiamento do único caminho que conduz ao esclarecimento e à verdade: decidir-se a estudar e investigar no laboratório sempre disponível da própria mente e do próprio coração!

    1. says: norma7

      Concordo contigo, Pedro. Têm-se, por vezes, a nítida impressão do realce de tudo que é negativo no Ser, para posterior apresentação do “caminho”, da ‘única’ tábua de salvação, para o reto proceder e ‘salvação’.

      “Conhece a ti mesmo” (do grego γνῶθι σεαυτόν) : o Dharmalog é um blog sobre o auto-conhecimento e as descobertas da vida.”

      O leque de opções que o Dharmalog oferece, parece-me ser a trilha certa, pela variedade de escolhas, que me permite optar por me aprofundar na que mais se afinar com o meu Ser, a que me trouxer a minha VERDADE.
      Ou todas. Ou nenhuma. Ou a minha pessoal, uma espiritualidade independente, moldada nas minhas experiências e criteriosa observação do que realmente funciona para mim. E que evolua dinamicamente, junto com a ampliação do meu próprio auto-conhecimento.
      Fique bem.

    2. says: Fabiano

      Boas palavras! E boas complementações! Lembrando o que o Nando disse por último: “Truth is a pathless land”. J. Krishnamurti.

      :-)

  2. says: norma7

    “Na realidade não existe unidade no homem, não existe um centro único de comando, nem um “Eu”, ou ego, permanente.”

    Eu não vejo um ‘Eu’ volúvel, um ‘Eu’ fragmentado. Eu vejo uma imensa beleza em todo o seu processo de evolução, no movimento contínuo da formação do Eu. Perfeito em conformidade com o seu ‘instante’. Em pleno caminhar…

    “Eu que me aguente comigo e com os comigos de mim.”
    – Fernando Pessoa
    citado no início do vídeo do Post anterior do E.Tolle – :)

    +++++++

    (…)
    como seu discípulo, o filósofo russo Piotr Demianovitch Ouspensky (…)

    O verdadeiro Mestre não é aquele que tem mais discípulos, mas aquele que forma mais Mestres.
    O verdadeiro líder não é aquele que tem mais seguidores, mas aquele que forma mais líderes.
    O verdadeiro rei não é aquele que tem mais súditos, mas aquele que confere dignidade real a mais pessoas.
    O verdadeiro professor não é aquele que tem mais conhecimento, mas aquele que o transmite a mais alunos.
    Fonte: CCD – vol.1 (Neale D.Walsch)

    +++++++++
    Grata pelo texto.
    Boa Sorte, Norma

    1. Gustavo, como sistema completo talvez. Não conheço pessoalmente (não que eu saiba, pelo menos) seguidores integrais ou grupos que estudem e pratiquem o 4º Caminho, mas há alguns (http://www.4c.com.br/grupos_quarto_caminho.htm).

      Partes do trabalho dele, no entanto, são muito estudadas e praticadas hoje, algumas em expansão, como é o caso do Eneagrama (que chegou a Oscar Ichazo e Claudio Naranjo e continua por vários outros).

      No mais, como diria o sábio, “truth is pathless”.

      Saudações,
      Nando

    1. says: norma7

      Rony,

      Zumbis comem cerébros. A partir de agora, começo a me preocupar contigo. Você não está a salvo! (•‿•)

      Gostei muito do que dizestes e como bônus… ficou lírico!

      Fique bem,
      Nac♥

    2. says: julio

      RONY, exato, e Eu diria apenas que o Eu é o que sustenta e é o juízo desse universo, verso desse EU… e a sucessão nessa mesma ordem até virar pó, ou estrela novamente depois do homem se iluminar na terra e a estrela se apagar no céu. rsrsr se antes Zumbis não comerem os cérebros que pensam que são e não são, para no fim ser tudo em vão, se não restar um centro e um Eu ainda que modesto, ainda que humilde, mas capaz de comer, cheirar, tatear, ouvir e saber que ele faz isso. Ou não,como diz o Caetano!

  3. says: Kennedy Duarte

    O Quarto Caminho e o texto citado só podem ser compreendidos mediante a “lembrança de si mesmo” que é a base deste ensinamento, sem ela a compreensão do texto fica completamente comprometida e, por conseguinte entendemos tudo errado. No livro “Fragmentos…” isso é exposto de maneira bem clara.

  4. says: Gilberto

    Os “eus são os demonios vermehos de seth! somente com a auto observação de si mesmo e com Mãe Divina poderemos elimina-los e voltar a ser uma unidade encarnando o Cristo em nós! realizemos os três fatores da revolução da consciência: Morrer, nascer e sacrificar-se pela humanidade!

    Abraços!

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