Como a Psicologia Ocidental enxerga a iluminação? Uma experiência autêntica? Uma auto-sugestão subjetiva? Um delírio? Uma experiência superior?
Amplamente difundida, estudada, treinada, experimentada e cultivada nas geografias orientais, principalmente nas culturas que adotaram o Budismo e o Yoga, a iluminação é uma palavra ainda estranha ao cidadão comum ocidental, embora também existam relatos esparsos em setores mais místicos de religiões clássicas e em indivíduos isolados (mas cada vez mais naqueles ligados a alguma exploração e prática oriental).
Vemos muito poucos psicanalistas, psicólogos e psiquiatras falando ou pesquisando a iluminação. Talvez porque os problemas mais urgentes e frequentes sejam de outra natureza, e estejam preenchendo todas as suas agendas; mas talvez porque não tenham conhecimento nem experiência suficiente para tratar disso, e nem a academia promova isso. Mas alguns trataram desse tema, como Carl G. Jung e William James, considerados também psicólogos transpessoais justamente por tratarem de experiências além do indivíduo, como a transcendência e a iluminação. William James escreveu o famoso livro “As Variedades da Experiência Religiosa“, de 1902, onde explorava relatos individuais das mais diferentes experiências religiosas, incluindo as de iluminação, que tratavam de compreensão total, sintonia com o infinito, sabedoria divina e diversas outras descrições. Até hoje é uma obra marcante e de referência, mas foi apenas o início.
O psicanalista e filósofo alemão Erich Fromm (1900-1980) foi um dos que melhor tentou descrever e explorar o que seria a iluminação no livro “Psychoanalysis and Zen Buddhism“, de 1960. No meio de suas explicações, encontramos frases como “Estar iluminado significa ‘o completo despertar da personalidade total diante da realidade'”. No trecho abaixo, ele busca expressar a iluminação “em termos psicológicos”, comenta o que considera um erro de Carl Jung ao tratar da iluminação, cita Platão, Spinoza, a Bíblia e, principalmente, o satori do Zen-Budismo, considerada a experiência pura da iluminação.
//////////
ZEN-BUDISMO & PSICANÁLISE
Por Erich Fromm [trecho]
“Se quisermos expressar o que é a iluminação em termos psicológicos, eu diria que ela é um estado em que o indivíduo está completamente em sintonia com a sua realidade interna e externa, em que está plenamente consciente da realidade e a capta de modo integral. Ele está consciente dela, isto é, não se trata do seu cérebro, nem qualquer outra parte do seu organismo, mas ele, o homem inteiro. Ele está consciente dela; não como se a realidade fosse um objeto que ele capta com seu pensamento, mas ele capta a flor, o cachorro, o homem, em sua realidade completa.
Aquele que desperta está aberto e é capaz de responder ao mundo, e ele pode ser aberto e ser capaz de responder ao mundo porque renunciou a agarrar-se a si mesmo como uma coisa, e assim tornou-se vazio e capaz de perceber. Estar iluminado significa “o completo despertar da personalidade total diante da realidade.”
É muito importante compreender que o estado de iluminação não é um estado de dissociação ou de transe no qual o indivíduo acredita que está desperto, quando na verdade está profundamente adormecido. O psicólogo ocidental, naturalmente, terá uma tendência a acreditar que satori [ a iluminação] é apenas um estado subjetivo, e mesmo um psicólogo tão simpático em relação ao Zen quanto o dr. [Carl] Jung não consegue evitar o mesmo erro. Jung escreve: “A própria imaginação é uma ocorrência psíquica, e portanto, não faz diferença alguma se uma iluminação é qualificada de real ou imaginária. O homem que tem a iluminação, ou alega que a tem, pensa em qualquer caso que é iluminado (……) Mesmo que ele estivesse mentindo, a sua mentira seria um fato espiritual.”
Isso faz parte, é claro, da posição geral de relativismo adotada por Jung em relação à “verdade” da experiência religiosa. Ao contrário dele, eu acredito que uma mentira nunca é “um fato espiritual”, nem qualquer outro fato, na verdade, exceto o fato de ser uma mentira. Mas, de qualquer modo, a posição de Jung certamente não é compartilhada pelos zen budistas. Bem pelo contrário. Para eles é de crucial importância saber a diferença entre a experiência autêntica de satori, na qual a aquisição de um novo ponto de vista é real, e portanto verdadeira, e uma pseudo-experiência que pode ser de natureza histérica ou psicótica, na qual o estudante Zen está convencido de haver obtido satori, enquanto o mestre Zen tem que demonstrar que ele não obteve. Uma das funções do mestre Zen é, precisamente, estar vigilante em relação à confusão que o seu aluno faz entre a iluminação real e a iluminação imaginária.
O completo despertar para a realidade significa, falando em termos psicológicos, ter alcançado “uma orientação completamente produtiva”. Isso significa não relacionar-se com o mundo de modo receptivo, explorador, acumulativo, ou mercantilista; mas sim criativamente, ativamente (no sentido de Spinoza). No estado de completa produtividade não há véus que separem o eu do “não-eu”. O objeto não é mais um objeto; ele não fica contra mim, mas está comigo. A rosa que eu vejo não é um objeto para o meu pensamento, da maneira pela qual, quando eu digo “vejo uma rosa”, apenas afirmo que o objeto, rosa, cai na categoria “rosa”; mas da maneira em que se diz que “uma rosa é uma rosa é uma rosa”.
O estado de produtividade é ao mesmo tempo o estado da mais alta objetividade. Eu vejo o objeto sem as distorções provocadas pela minha cobiça e pelo meu medo. Vejo-o como ele é, e não como eu quero que ele seja, ou que não seja. Neste modo de percepção não há distorções paratáxicas [através do uso das palavras]. Há completa vitalidade, e existe uma síntese de objetividade e subjetividade. Eu tenho uma experiência intensa – e no entanto é permitido ao objeto que ele seja como ele é. Eu trago o objeto à vida, e o objeto me traz à vida. O satori parece misterioso apenas para a pessoa que não está consciente de até que ponto a sua percepção do mundo é puramente mental, ou paratáxica. Se o indivíduo estiver consciente disso, ele também perceberá uma consciência diferente, que se pode chamar de consciência completamente realista. O indivíduo pode ter experimentado apenas vislumbres dela: no entanto, ele pode imaginar como ela é. Um garoto pequeno que estuda piano não toca como um grande mestre. No entanto a performance do mestre não é um mistério: trata-se apenas da perfeição da experiência rudimentar que o garoto tem.
O fato de que a percepção não distorcida e não-cerebral da realidade constitui um elemento essencial da experiência Zen é expressado muito claramente em duas histórias Zen. Uma delas conta a conversa de um mestre com um monge:
“Você faz algum esforço para tornar-se disciplinado na verdade?”
“Sim.”
“Como você se exercita nisso?”
“Quando tenho fome, eu como; quando estou cansado, eu durmo”.
“Isto é o que todo mundo faz; podemos dizer então que todos estão fazendo o mesmo exercício?”
“Não.”
“Por quê?”
“Porque, quando eles comem, eles não comem, mas estão pensando em várias outras coisas, e assim permitindo-se ficar perturbados; quando eles dormem, eles não dormem, mas sonham com mil e uma coisas. É por isso que eles não são como eu.”
A história dificilmente precisa de alguma explicação. O indivíduo comum, levado pela insegurança, pela cobiça, pelo medo, é constantemente imerso em um mundo de fantasias (e nem sempre é consciente disso), no qual ele vê o mundo como se tivesse qualidades que ele projeta sobre o mundo, mas que não estão lá. Isso era um fato quando esta conversa ocorreu; e continua sendo um fato verdadeiro hoje, quando quase todos veem, ouvem, sentem e saboreiam mais com base em seus próprios pensamentos, do que com base naquelas funções dentro de si que são capazes de ver, ouvir, sentir e saborear.
A outra história, igualmente cheia de significado, é a afirmação de um mestre Zen que disse: “Antes que eu alcançasse a iluminação, os rios eram rios e as montanhas eram montanhas. Quando comecei a ficar iluminado, os rios não eram mais rios, e as montanhas não eram montanhas. Agora, desde que estou iluminado, os rios voltaram a ser rios e as montanhas são montanhas.”
Outra vez, temos o novo enfoque da realidade. O indivíduo comum é como o homem na caverna de Platão, que olha só as sombras e pensa que elas são a substância. Quando reconhece este erro, ele sabe apenas que as sombras não são a substância. Mas quando se torna um iluminado, ele troca a caverna e a sua escuridão pela luz do dia. Então ele vê a substância e não as sombras. Ele está desperto. Enquanto permanece no escuro, ele não pode entender a luz. (Como diz a Bíblia: “Uma luz brilhou na escuridão e a escuridão não a entendeu.”) Uma vez que está fora da escuridão, ele compreende a diferença entre a sua visão anterior do mundo como sombras, e a sua visão atual do mundo como realidade.”
//////////
Imagem: recorte da capa de “Zen-Buddhism & Psychoanalysis”, de Erich Fromm, D. T. Suzuki e Richard De Martino.
Como é gostoso um texto assim tão bem escrito… com referências encantadoras! E chega em muito boa hora – quando parece que os rios não são mais rios ;-) Obrigada e vida longa aos que não temem um bom textão!
Texto maravilhoso. Voltei a estudar, curso psicologia agora, e não tem como não sentir o choque entre o que eu já estudei, vi, vivi (estou longe de ser iluminada) e o que a psicologia ensina. Vou estudar Fromm. Obrigada pelo texto muito bem escrito e por ser um ponto de luz neste mundão.
Muito interessante o texto, gostei demais.