Nós temos as loucuras individuais e as loucuras coletivas. Elas são baseadas nessa característica: quando a gente vê as pessoas desrespeitando os outros, passando por cima dos outros, isso já é o sinal da loucura. A pessoa se fixa em alguma coisa, ela já não vê o outro, só vê o outro como alguma coisa dentro da sua própria vida. Este é um sintoma.
— Lama Padma Samten, em “A doença mental na perspectiva budista”, Parte 2, Revista Bodisatva.
Alguém viu alguém desrespeitando os outros por aí, em tempos recentes? Passando por cima dos outros? Pois então, é possível que esse discurso de Lama Padma Samten, realizado em 2010 no Rio de Janeiro, seja-nos útil neste momento, de grande loucura. Transcrito em 2017 pela Revista Bodisatva, sob o título “A Doença Mental na Perspectiva Budista“, o discurso inteiro foi dividido em 5 partes, todas já transcritas e publicadas no site da revista, todas discorrendo de maneira lúcida sobre a ausência de lucidez, ou loucura, que aparece a partir das nossas ilusões de identidade, dos nossos apegos em relação a elas e à nossa defesa ferrenha sobre elas.
Ainda que possa ocorrer alguma dialética a partir de tanta polaridade e atropelamento do outro, há uma importante necessidade de se entender esse processo louco. O engano de quem sou eu, de como me porto com essa identidade que penso ser fixa, de como a defendo, de como ensurdeço e de como ajo de maneira louca (porque “compreendo” de maneira louca). O cânone budista traz um conhecimento imenso a esse respeito, e Lama Padma Samten é uma referência importante que nos ajuda a entender isso no nosso contexto e na nossa língua.
É importante ler a íntegra do ensinamento, como está na Revista Bodisatva, para entender começo, meio e fim. O Lama diz:
Quando nós estamos em meio a uma crise, as crises são sempre alguma coisa parecida com um rato preso em algum lugar e que não está encontrando saída. A nossa mente gira acelerada porque nós estamos buscando saída e aquilo naturalmente já é a perturbação. Enquanto nós estamos focados intensamente buscando uma saída, a gente passa por cima dos outros, não vê os outros, tem um comportamento estranho. Uma das características das nossas crises é a gente não ver os outros. Ou seja, a gente está focado em alguma coisa muito específica e no caso da crise nós não estamos tendo vitória nenhuma, nós estamos nos sentindo ameaçados.
— Lama Padma Samten, em “A doença mental na perspectiva budista”, Parte 1, Revista Bodisatva.
Então dois aspectos da loucura são, em primeiro lugar, a busca, a ânsia por algo que entendo estar faltando aqui e agora. É o rato preso, ou a impressão do rato preso. Isso causa um distúrbio na mente, ou talvez seja a mente causando um distúrbio na vida. Em segundo, então, vem o movimento cego, que vai em direção ao que se busca, e, no caminho, atropela várias coisas, atropela pessoas, atropela a realidade. Viramos uma espécie de fantasma faminto, como a própria nomenclatura budista usa. Fantasma porque a pessoa “sai de si mesma”, se torna como um vulto, ausente da realidade, e faminto porque ela vai nessa forma de vulto mental em busca desse algo que ela acha que lhe falta, mas que é uma ilusão.
No livro “Transcendendo a Loucura”, recomendado pelo lama nesse discurso, o mestre tibetano Chögyam Trungpa Rinpoche diz que “a dimensão dos fantasmas famintos é o auge da pobreza“. Claro, se estou sempre buscando, como um zumbi, é porque não tenho, tenho a sensação de ser pobre. “E no fim o sentido de pobreza leva à agressão. Você não só não quer dar nada, mas você quer destruir as coisas que te lembram de dar. Esse é o mundo do inferno, ou naraka, um estado instantâneo e extremamente poderoso de agressão ou ódio.”, diz Chögyam Trungpa.
Porque isso acontece assim? Isso começa no “eu” que acho que sou, que é construído equivocadamente em algum momento, e que é o que achamos ser nossa identidade. Que é uma ilusão, que cedo ou tarde, como explica o Lama em vários trechos, vai cair, vai se desmanchar, vai ser destruída. É uma morte anunciada. Mas não sabemos disso, e mantemos ferrenhamente essa identidade, nos tornamos os fantasmas famintos, brigamos, defendemos, passamos por cima. E podemos brigar e defender da maneira mais sofisticada, calma, passiva e manipuladora, não é preciso que seja, literalmente, uma briga. A única condição é que tenhamos uma impressão de termos identidade, e de querermos proteger-la de alguma forma.
“Na medida que nós criamos essas identidades, elas andam bem, mas inevitavelmente construímos os infernos também. Porque essas identidades são artificiais. Na medida que se estabilizam, mais adiante, (…) nós temos os infernos construídos, que são as regiões de dissolução da identidade artificial e construída. Nós vamos fugir da destruição disso, nós vamos defender isso como quem defende qualquer coisa no meio do samsara e é inevitável que mais adiante nós vamos ter perdas desses panoramas todos, dessas visões todas, aí nós temos crises correspondentes.
— Lama Padma Samten, em “A doença mental na perspectiva budista”, Parte 1, Revista Bodisatva.
Essas identidades não precisam ser nem são de fato apenas o nome, o RG, a nacionalidade, etc. Podem ser uma infinidade de coisas, como “sou bondoso”, “sou eficiente”, “sou inteligente”, “sou calmo”, “sou aquele que ajuda”, e também coisas negativas, como “sou burro”, “sou um coitado”, “sou sempre o último”, “sou esquecido”, etc. Qualquer coisa a qual nos fixemos como tendo um sentido de identidade pra nós, é a impressão que criamos de ser a nossa própria identidade. Não precisamos sequer dizer isso a nós mesmos, basta que tenhamos a impressão que “somos” isso ou aquilo.
Gostaria de terminar com mais um trecho do Lama, que aproxima um pouco essa ensinamento do nosso mundo cotidiano, o mundo onde temos noticiário de jornal e partidas de futebol. É nele, afinal, que nossa loucura aparece. Que nós nos defendemos, passamos por cima dos outros. No trecho abaixo o Lama busca elucidar como a percepção da vacuidade é obliterada pela impressão de um mundo sólido. Quando nós achamos que temos identidades, papéis, nomes, funções, também achamos que todos os outros tem algo assim, e os mundos virtuais ilusórios aparecem. Se conseguirmos entender o que está escrito abaixo, talvez consigamos dar um grande passo sobre conhecer a nós mesmos, sobre entender o que não somos.
É natural que dentro dos mundos onde nós estamos vivendo a gente olhe os outros como alguém que está desempenhando algum papel (…). É natural. Então nós olhamos em todas as direções e pensamos que só existe a roda da vida, mas não é assim. Nós temos a natureza livre e entramos na roda da vida como um adolescente entra num jogo de computador, ou como seres livres, lúcidos, torcem por times dentro da roda da vida do campeonato nacional. Quando nós entramos nisso, aquilo parece completamente sólido. A gente abre os jornais, ali temos literalmente rolos de papel, cascatas de tinta trazendo mundos virtuais, como o campeonato nacional, completamente virtual. As pessoas que não estão vinculadas a isso olham, param e passam por cima. Como a gente olha, por exemplo, os classificados e não lê. Como a gente olha os cadernos sobre programas de televisão e também não lê. São mundos específicos. As pessoas que estão ali dentro têm a noção de que aquilo é um mundo sólido e aquilo dá todos os sinais de ser um mundo sólido. Mas não é. Não apenas aquilo não é, mas o do jornal também não é. Então nós temos relatos sobre mundos particulares ali dentro, que parecem mundos reais. Na visão budista, a nossa natureza pode se engajar em mundos desse tipo, que se assemelham a coisas reais, verdadeiras, mas são coisas parciais, limitadas. A loucura pertence aos mundos limitados, não pertence à dimensão livre da mente. Vocês vão ver que um dos sintomas da loucura é num jogo de futebol as pessoas trapacearem, por exemplo. Ou atingir violentamente um colega. Isso acontece.
— Lama Padma Samten, em “A doença mental na perspectiva budista”, Parte 2, Revista Bodisatva.
Temos rolos de papel e cascatas de tinta, olhamos os rolos de papel e as cascatas de tinta, e vemos mundos sólidos. Que maravilhosa visão. Se a gente passa pelos classificados e não lê, aquele mundo não existe. Mas se a gente lê, aquilo se torna um mundo sólido (pra nós). Um mundo virtual que parece um mundo real, e ficamos ali presos como um rato num mundo virtual. Limitado. “A loucura pertence aos mundos limitados“.
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