Como é possível superar o interesse egocêntrico e nossa fragmentação interior e exterior? A resposta de Krishnamurti

Vivemos tempos histéricos, li recentemente numa rede social. Se não histéricos, certamente polarizados, nós contra eles, minha verdade contra sua verdade (ou engano), bandeiras e mais bandeiras, gêneros, raças, nacionalidades, religiões… praticamente tudo que o pensamento consegue classificar parece passar por um agravamento de “lados” e de imposições, às vezes civilizadas, às vezes violentas. E ainda que existam liberdades fundamentais sendo defendidas, também há muita fragmentação. Essa fragmentação do ser humano e a paz que não chega nunca sempre foi um dos tempos dos diálogos promovidos pelo célebre filósofo indiano Jiddu Krishnamurti (1895-1986) — diálogos que permanecem atuais, talvez eternamente atuais. “Há possibilidade de alguma vez ultrapassar-se a atividade do interesse egocêntrico?”, pergunta ele, em seu estilo inquisitivo. “Este é um problema muito sério, uma questão concernente a toda a nossa vida; ela implica a meditação, a verdade, a beleza e o amor”.

jkrishnamurti15Sobre este problema da fragmentação, há um compêndio de citações do filósofo que o Instituto Cultural Krishnamurti mantém em seu site e que reproduzo em parte abaixo, editado, pois a seleção original é ainda mais extensa — sobre o título “Fragmentação Cultural, Social, Religiosa, Profissional” (a seleção completa está neste link, em português). São trechos selecionados de cinco livros: “Fora da Violência”, “O Novo Ente Humano”, “Palestras para Estudantes Americanos”, “La Llama de la Atención” e “Como Viver Neste Mundo”.

Krishnamurti argumenta, suscintamente, que nossas identificações com papéis, opiniões e julgamentos estão na origem das nossas fragmentações, dos nossos conflitos, da nossa dissipação constante de energia. Ele fala em “profissão particular, crença, convicção e experiências” às quais nos apegamos como esses causadores. Não vemos a totalidade, vemos apenas uma parte. E nos identificamos com ela ativamente. Para vermos uma coisa totalmente e assim estarmos livres do conflito e da fragmentação interna, a mente deve estar livre.

A proposta de Krishnamurti é vista como radical por algumas pessoas, inclusive por ele mesmo, que não raras vezes fala em “revolução radical” e “mudança imediata”. A diferença é que ele não adota esta como uma opção melhor entre outras, mas como a única capaz de real e profunda libertação humana — dos conflitos, das fragmentação, do interesse egóico. A quem está entrando em contato com a mensagem deste filósofo pela primeira vez nesses trechos, proceda com cuidado. E, se necessário, busque os contextos dos livros e da obra completa.

Os trechos estão abaixo, separados por obra e também por uma sequência sugerida na seleção do Instituto, a quem agradeço pela preservação e disponibilidade de tão precioso conteúdo.

[1]

Um dos mais importantes problemas, ainda por resolver, é o de estabelecer uma unidade completa (do ser humano), algo que esteja além do fragmentário e egocêntrico interesse no “eu”, em qualquer nível que seja – social, econômico ou religioso. O “eu” e o “não-eu”, o “nós” e “eles” são os fatores da divisão.

Há possibilidade de alguma vez ultrapassar-se a atividade do interesse egocêntrico? (…)

Como é possível ultrapassar a atividade do interesse egocêntrico – reconhecendo-se que há no ente humano uma grande porção da agressividade e da violência do animal, (…) de sua atividade irracional e daninha; e reconhecendo o quanto o ente humano está emaranhado em crenças, dogmas e teorias “separativas” (…)?

Assim, ante essa vasta fragmentação, existente tanto interior como exteriormente, a única solução é o ente humano produzir em si próprio uma revolução radical, profunda. Este é um problema muito sério, uma questão concernente a toda a nossa vida; ela implica a meditação, a verdade, a beleza e o amor.

—Jiddu Krishnamurti, em “Fora da Violência“, pgs 139 e 150

[2]

(…) Nossa vida, toda ela, é ação em estado de fragmentação. Somos entes humanos fragmentados, tanto exterior como interiormente. Vede o que está acontecendo na Índia (…) É uma fragmentação contínua, não só politicamente, mas também na religião – católicos contra protestantes, hinduístas contra muçulmanos – e na vida pública e particular. (…) (, pág. 12)

Na vida particular sois uma coisa e, em público, sois outra coisa. Viveis num estado de fragmentação. (…) Podeis ver que isso está sucedendo no mundo inteiro e também dentro de vós, essa fragmentação – observador e coisa observada, analista e coisa analisada. (Idem, pág. 12)

—Jiddu Krishnamurti, em “O Novo Ente Humano“, pg 12

[3]

Cada um tem sua própria profissão particular, (…) crença, (…) convicção e experiências, às quais se apega; portanto, cada um está se isolando a si mesmo. Essa atividade egocêntrica se expressa exteriormente como nacionalismo, como intolerância religiosa (…) E, ao mesmo tempo, cada um de nós se isola a si mesmo dos demais. (, pág. 98)

Portanto, se somos conscientes de tudo isto, qual é nossa resposta (…) a todo fenômeno que sucede no mundo? Deve o indivíduo considerar somente sua própria vida pessoal, como viver em algum rincão uma vida tranqüila, serena, sem perturbações? Ou se interessa ele pela existência humana total, pela humanidade total? Se ele se interessa somente pela própria vida particular, (…) então não compreende que a parte pertence ao todo. Deve-se olhar a vida, não a vida americana ou a asiática, senão a vida como totalidade. (…). (Idem, pág. 99)

—Jiddu Krishnamurti, em “La Llama de la Atención“, pgs, 98-99

[4]

Ao observarmos as diversas atividades dos diferentes campos de nossa vida, somos inevitavelmente levados a perguntar se existe alguma possibilidade de juntá-los, uni-los, produzir uma integração, de modo que o que fizermos em casa ou no escritório – qualquer coisa que façamos – revele coerência, não seja contraditório e, por conseguinte, não crie dor. Isto é: existe uma ação verdadeira e plena em todos os campos? Não sei se já refletistes nesse problema, ou seja, se existe possibilidade de integrar, unir, harmonizar as ações, desejos, propósitos e impulsos contraditórios de nossa vida. Afinal, (…) onde há contradição há dor, há luta, sofrimento e aflição.

—Jiddu Krishnamurti, em “Palestras com Estudantes Americanos“, pág. 121-122

[5]

Para pordes fim a essa batalha, deveis olhar todo o campo da existência; não apenas uma parte dele: sua totalidade. Em nosso estado atual, somos incapazes de observar o campo inteiro – o todo – porque dividimos a vida em vida de negócios, (…) de família, vida religiosa; e como cada uma dessas frações tem sua própria energia ativa, cada fragmento está oposto aos outros fragmentos e, assim, essas energias fragmentárias estão dissipando nossa energia total.

— Jiddu Krishnamurti, em “O Novo Ente Humano“, pág. 75

[6]

Vemos o quadro inteiro, ou apenas uma parte dele, um detalhe? Essa é uma pergunta muito importante (…), porque nós vemos as coisas em fragmentos e pensamos em fragmentos. (…) Temos, pois, de investigar o que significa ver totalmente. Perguntamos se nossa mente pode ver o todo, apesar de ter sempre funcionado fragmentariamente, como nacionalista, (…) coletividade, (…) católico, alemão, russo, francês ou (…) numa sociedade tecnológica, funcionando numa especialidade, etc. – tudo dividido em fragmentos, com o bem oposto ao mal, o ódio ao amor (…).

Assim, para se ver alguma coisa totalmente, (…) a mente deve estar livre de toda fragmentação, porquanto a origem da fragmentação é justamente aquele centro de onde estamos olhando. O fundo, a cultura, na qual o indivíduo é (…) protestante, comunista, socialista (…), é o centro de onde se está olhando. Assim, enquanto estamos a olhar a vida de certo ponto de vista, ou de dada experiência (…) que constitui nosso fundo, nosso “eu”, não podemos ver a totalidade. (…)

(…) Só se pode ver a totalidade de uma coisa quando o pensamento não interfere, porque então não se vê verbalmente nem intelectualmente, porém realmente (…) Vemos então a realidade, i.e., que somos dependentes (…) Observamos, e fazemo-lo sem termos um centro, (…) estrutura do pensamento. Quando há observação dessa espécie, vê-se o quadro inteiro e não um simples fragmento dele; e quando a mente vê o quadro inteiro, há liberdade.

—Jiddu Krishnamurti, em “Como Viver neste Mundo“, pág. 18-21-22

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