Poucos sabem que os Alcóolicos Anônimos foram criados por inspiração de Carl G. Jung. E que o psiquiatra suíço considerava que alguns casos de alcoolismo eram na verdade um tipo de busca espiritual que não havia encontrado apoio na educação para a espiritualidade, numa forma superior de desenvolvimento interior, e por causas das culturas e circunstâncias sociais — ou talvez das poderosas forças malignas do mundo, como cita Jung — se voltava para o alcoolismo. Não por acaso, tanto um dos pacientes alcólatras de Jung, Rowland H., que viria a influenciar a criação do AA, assim como um dos próprios fundadores, Bill Wilson, tiveram experiências religiosas fulminantes que os levaram não só ao fim abrupto do alcoolismo, como a terem visões diferentes da existência humana, do ego e da liberdade de ser.
A experiência de Wilson estará em breve num outro post (UPDATE: o outro post está aqui), mas a de Rowland e principalmente a visão de Jung sobre o alcoolismo e sua relação com a busca espiritual é o que gostaria de tratar aqui. A relação do alcoolismo, denominado “o veneno mais depravado” por Jung, que o considerava uma manifestação do Mal, com uma busca espiritual genuína, é reveladora e traz compreensão mais ampla não só do alcoolismo, mas de vários outros vícios e problemas humanos sérios.
Jung é até um tanto fatalista quando diz que o ser humano precisa de uma circunstância apropriada para escapar ao mal: “Um homem comum, sem a proteção de uma ação superior e isolado na sociedade, não pode resistir à força do mal, que é chamada muito apropriadamente de Diabo”.
Mas vamos ver como o paciente de Jung escapou das ditas forças do mal, mesmo depois de ter sido praticamente desacreditado de cura pelo próprio Jung. Numa carta datada de 26 de janeiro de 1961, escrita de Nova Iorque (EUA), Bill Wilson, que foi esse co-fundador do Alcóolicos Anônimos que mencionei, escreveu a Carl G. Jung, então em Zurique (Suíça), informando a ele que havia sido inspiração fundamental para a criação do AA. Um trecho da carta:
“Esta carta de grande apreciação era devida a longo tempo. Permita que me apresente, sou Bill W., um co-fundador da Sociedade Alcoólicos Anônimos. Ainda que o Sr, certamente, tenha ouvido de nós, eu duvido que o Sr. esteja consciente de que uma certa conversa que teve com um de seus pacientes, o Sr. Rowland H., no início dos anos 30, teve um papel crítico na fundação de nossa Irmandade. Apesar de Rowland ter falecido a bom tempo, as recordações de sua experiência marcante enquanto em tratamento consigo tornou-se parte da história de Alcoólicos Anônimos (…)”.
— BILL WILSON (a carta completa aqui)
A carta conta a história de como Rowland H, então paciente de Jung, recebeu um diagnóstico respeitoso mas relativamente desmotivador de Jung. E que a única maneira que Jung via para Rowland era ou uma experiência religiosa verdadeira ou a entrada numa comunidade protetiva forte. A história não é contada nem por Rowland nem por Jung, mas pelo próprio Wilson, na mesma carta:
“Minha lembrança do que me relatou sobre essa conversa é isso: primeiro de tudo, o Sr. disse francamente a ele de sua desesperança, quanto a qualquer tratamento médico ou psiquiátrico que pudesse ser útil. Essa sua afirmação cândida e humilde foi sem sombra de dúvida a primeira pedra da base sobre a qual nossa Sociedade tem sido levantada. Vindo do senhor a quem ele admira e confia tanto, o impacto sobre ele foi imenso. Então, quando ele lhe perguntou se havia alguma outra esperança, o Sr. disse a ele que podia haver, uma vez que ele poderia ser o sujeito de uma experiência espiritual ou religiosa – em resumo, uma conversão genuína. O Sr. apontou-lhe como tal experiência, se acontecesse, poderia remotivá-lo quando nada mais poderia fazê-lo. Mas o Sr, pediu cuidado, pois apesar deque tais experiências algumas vezes trouxeram sobriedade a alcoólatras, elas eram relativamente raras. O Sr. recomendou que ele se colocasse em uma atmosfera religiosa e esperasse pelo melhor. Isso foi, eu creio a substância de seu conselho.”
— BILL WILSON
O que segue daí é que Rowland encontrou uma comunidade chamada Grupo Oxford, ou G.O., um movimento evangélico de sucesso na Europa, que enfatizava muito o serviço aos outros, a meditação e a oração. Rowland se tornou assíduo, e esse contato o livrou do vício de beber. Logo depois, entrou num G.O. em Nova Iorque, que continha vários alcoólatras já sóbrios, e daí se seguiu o encontro com Wilson, que também sofrera uma desesperança grave do seu médico, entrou em depressão, e teve então uma experiência religiosa genuína, que o levou a criar o A.A..
Jung responde a Wilson dizendo o seguinte sobre o que lembrava de Rowland:
“O vício dele por álcool era o equivalente, em um nível inferior, à sede espiritual do nosso ser por plenitude, expressada em um linguagem medieval: a união com Deus. Como poderia alguém formular tal insight numa linguagem que não é mal compreendida nos dias atuais? A única maneira correta e legítima para ter tal experiência é que ela aconteça a você na realidade, e que só pode acontecer a você quando você anda no caminho que leva você a uma compreensão mais elevada”.
— CARL G. JUNG
O que “salva” as pessoas do alcoolismo? Não há um salvador em si, mas o que poderíamos chamar de orientador, algo que canaliza as energias e inquietações do ser para caminhos e respostas superiores, para práticas e compreensão que esclarece, ao invés de obscurecer e adoecer. Um insight religioso verdadeiro ou ajuda de um grupo, diz Jung:
“Estou fortemente convencido que o princípio do mal prevalecente neste mundo leva uma necessidade espiritual não-reconhecida à perdição, se não for neutralizada por um insight religioso verdadeiro ou por um escudo de proteção de uma comunidade humana”.
— CARL G. JUNG
Quantos casos não conhecemos de pessoas que foram ao AA na hora certa, e mudaram de vida? Não só se livraram do álcool, mas o fizeram de uma maneira lúcida e inteligente, e mesmo encontraram a religiosidade, muitas vezes de uma maneira muito mais sã e sincera do que muitos dos religiosos fanáticos que não tem de fato nenhuma conexão genuína com a verdade espiritual. O AA talvez seja um ponto de re-orientação de várias pessoas do álcool para a espiritualidade.
Ainda na mesma carta para Bill Wilson, Jung encerra sua mensagem falando exatamente disso:
“Veja, álcool em Latin é spiritus, e você usa a mesma palavra tanto para a experiência religiosa mais elevada como para o veneno mais depravado. A fórmula curativa portanto é: spiritus contra spiritum. Obrigado novamente por sua carinhosa carta.”
— CARL G. JUNG, em “Letters Vol. II” (pgs 623-624)
PS: Esse post não é uma “elevação” do alcoolismo de absolutamente nenhuma maneira. O alcoolismo continua destruindo vidas, de muitas e várias maneiras, e destruindo famílias associadas a ele. Se há um paralelo com a busca espiritual, é para que possamos compreender um pouco mais a doença e as pessoas que estão nessa situação, e, quem sabe, ampliar as possibilidades de ajuda.
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Comentários vários:
1-A A.A.ou alcoólicos anônimos lembra a A.A. Astrum Argentum (estrela de prata) ordem thelemica do Crowley.
2-Nos centros espíritas e umbandistas o médium ingere álcool para que determinada entidade possa descer ou incorporar.
3-Eu usava de bebida pinga principalmente que me levava a projeção lúcida .
Concordo plenamente com o Jung é que tem tudo haver mesmo.
Muito interessante, é uma busca no religare mas as pessoas nao sabem o como fazer , realmente tudo haver , quantos nao sao curados em igrejas especialmente evangélicas desse mal do álcool porque inculcam a espiritualidade benéfica neles,e nos centros umbandistas o uso para a transição , muito bom esse artigo.
Eu sou a prova viva que AA funciona, depois de poucas reuniões minha obsessão pelo álcool desapareceu, e aos poucos minha conexão com o “PODER SUPERIOR” se fortaleceu de uma maneira nunca vivenciada antes. E sou muito grato!