“Quando há apego, não há visão”: o caminho da compaixão para a sabedoria

“Para perceber a vacuidade, a essência dos ensinamentos, é necessário soltar todos os apegos ao ego. No início você é como uma menina bonita que, se olhando no espelho, lava detalhadamente o rosto, aplica cuidadosamente a maquiagem, arruma o cabelo e pensa: “pareço uma princesa paradisíaca”. Você tem um forte apego e controle da sua meditação, e não mais do que uma compreensão intelectual da vacuidade. Enquanto houver apego, o ego está presente. Quando tais obscurecimentos acontecem, há escuridão mental, ou ignorância. Como o grande mestre Sakya, Kunga Nyingpo, ouviu de Manjusri em uma visão, “Quando há apego, não há visão”.
Dilgo Khyentse Rinpoche

Sabedoria e compaixão são as duas asas do pássaro que leva à iluminação, dizem alguns mestres budistas. Um não funciona sem o outro. Acho que temos uma idéia razoável do que seja sabedoria, mas compaixão é uma palavra que parece um pouco distante da nossa cultura ocidental, que costuma usar mais termos como bondade, amor e generosidade. Alguns de nós também confundem compaixão com pena, por exemplo (há um esclarecimento do Dalai Lama sobre isso em um outro post aqui).

Neste trecho acima, o grande mestre budista Dilgo Khyentse Rinpoche (1910-1991), traz uma função fundamental da compaixão, justamente em relação à sabedoria. “Quando há apego, não há visão“. Quando há apego, não há entendimento. Não é possível ver a realidade. É extremamente poderoso entender isso e aceitar que, sem tratar nosso egoísmo, sem desenvolver a compaixão para apaziguá-lo e erradicá-lo, nossos olhos não serão capazes de ver o que há para ver. O egoísmo causa uma espécie de miopia. Você vê perto, como a princesa se vê no espelho (ou vê sua aparência no espelho), mas não vê o outro.

A compreensão da vacuidade, de que tudo é vazio, tão central à iluminação ensinada por Buda, é então bloqueada por esse egoísmo. E este é outro ponto necessário para nós e nossa crença ocidental de que a sabedoria virá de algum Buda ou Deus externo, ou de um tribunal de méritos celestial. A visão vêm da sanidade interior, da clareza e da espaçosidade. Vem de curar a doença do egoísmo. O egoísmo altera a capacidade dos olhos-da-sabedoria enxergarem. É em nós mesmos que o egoísmo opera e causa danos, impedindo a visão. Então mesmo que você esteja numa caverna no topo dos Himalaias, estudando e meditando e praticando, enquanto houver egoísmo, a visão não será possível.

A compaixão passa a ser, então, a maneira de curar esse egoísmo e abrir os olhos para a compreensão. A compaixão é o que cura o apego.

Swami Dayananda Saraswati (1930-2015), grande mestre de Vedanta (contemporâneo de Dilgo Khyentse Rnpoche, embora sejam de duas escolas diferentes), certa vez disse que o apego se dá porque projetamos nossos valores nas coisas e nos fenômenos, e assim não podemos ver como são.

“É meu valor subjetivo pelas coisas que transforma um simples objeto num objeto de valor especial, um objeto peculiarmente importante pra mim. Torno-me apegado a tais objetos apenas porque me prendo a eles, não porque eles se prendam a mim. Nenhuma casa me prende, eu me prendo à casa por causa do valor subjetivo que projeto nela. Objetos não me pegam e prendem. Eu os prendo. A prisão está em mim mesmo, em meus valores subjetivos baseados na incapacidade para compreender as limitações dos objetos, sua impossibilidade de me preencherem. Quando compreendo, a prisão desaparece e vejo a coisas como são.”
Swami Dayananda Saraswati, em “O Valor dos Valores”

Então mesmo a princesa que se olha no espelho vê apenas sua aparência, não vê como ela é. E se apega à aparência, nutrindo o egoísmo e incapacitando a visão. E isso se retroalimenta: a visão cega gera a motivação para nutrir a si mesmo, nutrir a si mesmo continua fazendo com que vejamos apenas nós mesmos.

Há duas maneiras: como é e como aparece“, ensinava ainda outro mestre budista, Chagdud Tulku Rinpoche (1930-2002). Enquanto houver apego ao ego, veremos apenas como aparece. Não haverá visão.

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