“Monges,
Não conheço outra coisa com tal poder
de causar o surgimento de estados sãos (saudáveis)
se ainda não tiverem surgido,
ou de causar o desaparecimento de estados insanos (insalubres),
se já tiverem surgido,
do que a diligência (appamada)”.
— Buda Shakyamuni, no Anguttara Nikaya Sutra, 1:6
Essas palavras estão num dos principais sutras que contém, segundo a tradição budista, os ensinamentos originais do Buda Shakyamuni, o Buda histórico, que foram mantidos do idioma Páli (o idioma falado por ele). Apesar de ter dado milhares de ensinamentos, a concentração das suas recomendações na diligência, ou atenção plena, ou vigilância consciente, é notável. Neste trecho, ele diz que é justamente appamada, essa diligência, que é o fator mais forte para causar sanidade e evitar insanidade.
Segundo alguns registros, em suas últimas palavras o Buda histórico também enfatizou a diligência ou a atenção plena, principalmente sobre a impermanência. Ele teria dito, em suas últimas palavras: “Todos os agregados (Sankhara) são perecíveis. Empenhe-se pela sua própria liberação com diligência“. Outras traduções possíveis dessa mesma fala incluem: (1) “Monges, falo a vocês agora. As coisas condicionadas são sujeitas à decadência. Façam o que tem que ser feito sem demora”, e (2) “Monges, agora este é meu conselho: a experiência é desapontadora, é através da vigilância que você será bem-sucedido“, e (3) “Transitórias são todas as construções. Esteja alerta e treine!“.
Qualquer que seja a tradução, elas se parecem no sentido de apontar o desapego às coisas do mundo, aos agregados e à experiência baseada neles, e sugerir a atenção vigilante como o caminho. Mas não quero ficar discutindo as traduções, mas sim e especialmente o termo appamada.
Appamada significa aproximadamente alerta, atenção consciente, não-desleixo, seriedade resiliente, diligência, vigilância, e é considerada o fundamento de todo o progresso auspicioso. Não é apenas qualquer atenção, mas é uma consciência sempre presente, que implica também em uma qualidade de ser pura, aberta e controlada. Imagino que seja como o fogo em uma panela no fogão: pode haver vasta instrução de ações, técnicas, postura, intenção, de práticas etc, mas sem esse fogo da atenção vigilante aceso, nada irá cozinhar.
Agora o mais interessante: etimologicamente, appamada é a negação de pamada, que significa “negligência” ou “lassidão“. Ap-pamada. Assim, appamada seria não-negligência, não-lassidão.
Mas isso não é apenas etimologia, pois a negação da lassidão ou da negligência também acaba fazendo referência à presença dessas coisas em nossa vida. Não é errado (pra mim, né) inferir que justamente porque há (tanta) negligência e lassidão em nós é que Buda recomenda a ausência delas, appamada. Pense nisso. Desde nossa mente até nosso comportamento, há uma predominância letal da negligência e da lassidão. Sem negligência e sem lassidão, teríamos caminho livre para o despertar. Mas, ao contrário, ficamos perambulando no samsara, perdidos através da nossa própria desatenção e negligência.
Insisto, só mais uma vez, porque é um detalhe fundamental: Buda não usou um termo positivo, para denotar algo a ser “criado” por nós. Ele usou várias vezes termos positivos em seus ensinamentos, como compreensão correta ou visão correta, por exemplo, e poderia ter usado aqui também. E Buda obviamente não usa qualquer palavra, ele possui a fala iluminada. Ele usou um termo negativo, um termo que indica o cancelamento de algo (a negligência), para nos indicar o caminho da sabedoria. Usou um termo que indica a ausência de algo ruim, nocivo, que é a indulgência que temos com nossa própria atenção e consciência.
De fato, no mesmo Sutra usado na abertura desse post, ele fala quase a mesma coisa, invertendo a ordem dos fatores:
“Monges,
Não conheço outra coisa com tal poder
de causar o surgimento de estados insanos (insalubres)
se ainda não tiverem surgido,
ou de causar o desaparecimento de estados sãos (saudáveis),
se já tiverem surgido,
do que negligência (pamada)”.
— Buda Shakyamuni, no Anguttara Nikaya Sutra
Ou seja, a negligência causa os estados insanos, com força tal que o próprio Buda desconhece algo pior. Isso pra mim é um ensinamento precioso gigantesco, como se um grande sino do tamanho da nossa galáxia estivesse sendo tocado.
Isso se conecta totalmente com o pressuposto budista de que a ignorância é a causa original do problema do sofrimento, e do sono humano. A ignorância é ignorar, é negligenciar, é quase evitar algo que existe. Ignorância assim tem uma íntima conexão, ou mesmo direta conexão, com a negligência. A solução seria interromper a negligência e lassidão, que também reverteria a ignorância.
Comentários sobre os sutras também associam essa atenção que é não-negligência com a própria presença, que por sua vez é definida como “não-ausência” (aqui também uma composição negativa) de consciência.
Isso tudo pressupõe que a consciência e a presença estejam sempre aqui, e que o que é preciso é desobstruir o caminho, interrompido por negligência, lassidão e ausência. Dzongsar Khyentse Rinpoche disse certa que vez “uma vez que nosso problema fundamental é a distração, a solução fundamental é estarmos diligentes” (“Not For Happiness”, 2012).
//////////
boa noite. diligência neste caso seria no sentido de ser diligente em todos setores de nossas vidas ou somente em relação à prática budista? obrigado.
Oi Fernando,
Até onde eu consigo entender, é em tudo. Diligência como um empenho em estar consciente, em cada momento, em todos os momentos. Já vi esse mesmo trecho ser traduzido usando as palavras “cuidado” e “atenção” no lugar de diligência, então é nesse sentido. Se fosse apenas durante a prática, e a prática durasse, vamos dizer, 1h, as outras 23h do dia estariam sob o domínio da negligência, desatenção, descuido. Então é necessário ser diligente na vida.
Um abraço.