Dzongsar Khyentse Rinpoche explica a iluminação: ausência de paranóia e obsessão

Com a chegada de cada vez mais mestres importantes do Oriente e seus ensinamentos, a iluminação vai deixando de ser uma idéia mirabolante e fantástica e passa a ser algo traduzível, compreensível e tangível, ainda que continue aparentemente distante do indivíduo ocidental habitualmente iludido. Dzongsar Jamyang Khytense Rinpoche, grande mestre budista butanês que estará no Brasil no final deste ano (mais informações no Chagdud Gonpa), faz uma tradução de iluminação como o fim das paranóias, ou o fim das obsessões. “Nós temos obsessões, obsessões. (…) Da nossa vida passada, da nossa mãe, do pai, dos avós, dos mestres, da cultura, tudo isso”, diz Dzongsar no texto abaixo, reproduzido do seu site e contido no livro “The Three Levels of Perception” (Os Três Níveis de Percepção, 2003).

Obsessões obsessões e obsessões. O lama, autor e pesquisador Alan Wallace disse certa vez que “nosso estado mental normal é um distúrbio obsessivo compulsivo delusório”, e Dzongsar Khyentse parece pensar parecido. Ele usa inclusive um exemplo de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo) para descrever a compulsão obsessiva do nosso cotidiano, mas não o restringe ao TOC, e sim o estende ao nosso estado “normal”.

Se formos olhar bem, como ele sugere, vamos encontrar obsessão e paranóia em tudo. Acordamos com coisas na cabeça, vamos realizando e adotando novas coisas durante o dia, sempre com algum tipo de movimento mental associado a essas tarefas, desejos, movimentos, preocupações com nós mesmos, nossa imagem, nossa segurança, nossos medos, que queremos ir a tal lugar, que não queremos sentir tal coisa, e vamos com esse zum-zum interno pra lá e pra cá, ocupados e preocupados. Paranóicos e obsessivos. Parece que há sempre um ruminar mental, uma aspiração constante ao que vem a seguir, uma tensão e esforço ininterruptos, como um motor sempre ligado. Iluminação seria, assim, o desligamento desse motor. A desobsessão total.

Veja o que diz Dzongsar Khyentse Rinpoche, traduzido:

“Iluminação, basicamente você quer saber o que é iluminação. Como eu disse, iluminação é uma ausência de paranóia. Ok, vou lhes contar. Nós temos tantas obsessões, obsessões. Certos impulsos obsessivos também. Você entende? Obsessões. Obsessões vindo das nossas tendências habituais, que vem de nossa vida passada ou obsessões ensinadas por nossa mãe, pai, avós. Ou obsessão que é ensinada pelo grande mestre Confúcio. Obsessão que vem da nossa cultura. Tudo isso. E essas obsessões realmente lhe capturam, e tornam sua vida limitada.

Vou lhes dar um exemplo. Talvez você seja exatamente essa pessoa. Pense, estou lhe dando um exemplo. Sabe, quando às vezes vamos pra cama, algumas pessoas tem essa obsessão que tem que colocar os sapatos numa certa ordem perto da cama. Realmente naquela ordem. De frente pra porta e não pra cama. Eles vão dormir e se perguntam: “Eu coloquei os sapatos certos? Talvez não”. Você checa. Você vê os sapatos. Sim, está de frente pra lá. De frente pra porta. Está na ordem certa, não está de cabeça pra baixo. E então você dorme. Depois de meia hora: “Aquilo foi um sonho ou eu realmente os coloquei certo?” Você levanta e olha.

Estou lhe dando um exemplo muito extremo, mas se você pensar, toda sua vida é um pouco assim. Nossa vida. Há tanta obsessão. Como as obsessões dos pais sobre se os filhos devem estudar isso isso isso isso. As obsessões do marido de que a esposa deve fazer isso e aquilo. As obsessões da esposa de que o marido deve fazer isso e aquilo. Entende? Nós temos certas regras que queremos executar e esperamos que as pessoas cumpram. É isso que chamamos de obsessão.

Conforme você pratica o Dharma, você pratica e pratica e pratica. Um dia você chuta seu sapato com o pé direito. O sapato vai parar no altar, no topo do altar, não sei. O sapato esquerdo vai direto para o banheiro e afunda na privada. Você permanece dormindo, nada, você não se importa nenhum pouco sobre onde ele foi. Isso é iluminação. Nenhuma obsessão mais, nada mais com que se preocupar. Há uma forma curta disso, nos Estados Unidos chamamos de CCL. “Couldn’t care less” (uma expressão sem tradução literal em português, mas que poderiamos dizer que significa “eu não poderia me importar menos”, ou “não me interessa nada”). Você tem que alcançar isso. CCL é a versão americana de iluminação. Nada mais com o que se importar. Mas então isso é acompanhado pela compaixão. Você não tem só CCL, você realmente quer que as outras pessoas tenha CCL. Isso é importante”.

Dzongsar Jamyang Khyentse Rinpoche, em “The Three Levels of Perception” (Os Três Níveis de Percepção), Sakya Tenphel Ling, Singapore, 2003.

Foto: Jigme Tenzing.

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