Mingyur Rinpoche explica a vacuidade, “uma das palavras mais mal-entedidas” da filosofia budista

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O mestre budista nepalês Yongey Mingyur Rinpoche, do Budismo Tibetano, que está no Brasil para o lançamento do livro “Alegre Sabedoria” (Lúcida Letra) e para palestras no Rio de Janeiro e São Paulo, traduz o importante (e confuso e temeroso) conceito de vacuidade pela experiência de “senso de abertura” que vem com o repouso da mente. No seu livro mais conhecido, “A Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade“, Mingyur diz que a vacuidade “é provavelmente uma das palavras mais mal-entendidas da filosofia budista“, e também uma das mais mencionadas, pois está ligada diretamente às revelações da natureza da mente e à prática da meditação.

O que é vacuidade? E porque deveríamos nos importar com isso? Em tese, só deveríamos nos preocupar se quisermos entender a filosofia e os ensinamentos budistas. Mas inevitavelmente vamos passar por ela, ou naturalmente a experiência da vacuidade será realizada em um algum momento da prática, justamente por ser parte da própria natureza da mente. Mas vacuidade não é exatamente “vazio” nem “a existência do nada“. Mingyur diz que “muitos dos primeiros tradutores dos textos budistas em sânscrito e tibetano interpretavam a vacuidade como “o Vazio” ou o nada — erroneamente relacionando a vacuidade com a idéia de que nada existe. Nada estaria mais longe da verdade que o Buda buscava descrever“.

A idéia do nada ou do vazio é obviamente um dos pavores do nosso senso de existência individual. Não é raro que, ao nos aproximarmos de fazer contato com essa compreensão, nos afastemos com medo. Isso está bem presente no próprio exemplo que Mingyur cita no trecho abaixo, em que o discípulo a quem ele instrui sobre vacuidade fica seguidamente perplexo com a possibilidade da sua própria existência sólida dentro da vacuidade, e também com “quem vai morrer“, e com a possibilidade de “não ser nada“.

Perplexo ou não, se a vacuidade pode ajudar a entender a existência e a realidade, ou se ela é em si mesma parte dessa realidade, para que evitaríamos compreendê-la?

O trecho do livro onde Mingyur explica a vacuidade segue abaixo, onde ele invoca a palavra tibetana original, “tongpa-nyi“, e sua relação mais literal com o “inconcebível” ou o “que não pode ser nomeado” (do que com o vazio ou com o nada). O autor ainda segue o assunto no mesmo livro com mais capítulos, explicando-o por vários ângulos, criando correspondências com a ciência ocidental, e citando também o Sutra do Coração, famosa obra budista que possui afirmações clássicas à respeito da forma e vazio.

Mais informações sobre os eventos com Yongey Mingyur Rinpoche no Brasil podem ser conferidas no site do Centro Tergar Brasil.

Para saber mais sobre Mingyur Rinpoche, leia essa boa descrição da formação do mestre, de autoria de Padme Dorje, Mingyur Rinpoche, O Professor da Estabilidade Adamantina.

Segue abaixo o trecho citado.

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“A Vacuidade: a realidade além da realidade”
Por YONGEY MINGYUR RINPOCHE
do livro “A Alegria de Viver – Descobrindo o Segredo da Felicidade”

O SENSO DE ABERTURA QUE AS pessoas vivenciam quando repousam suas mentes é conhecido nos termos do budismo como vacuidade, que é provavelmente uma das palavras mais mal-entendidas da filosofia budista. Já é difícil para os próprios budistas compreender o termo, mas os leitores ocidentais têm ainda mais dificuldade, já que muitos dos primeiros tradutores dos textos budistas em sânscrito e tibetano interpretavam a vacuidade como “o Vazio” ou o nada — erroneamente relacionando a vacuidade com a idéia de que nada existe. Nada estaria mais longe da verdade que o Buda buscava descrever.

Apesar de o Buda de fato ter ensinado que a natureza da mente — na verdade, a natureza de todos os fenômenos — é a vacuidade, ele não quis dizer que sua natureza fosse verdadeiramente vazia, como um vácuo. Ele disse que ela era vacuidade, termo que, em tibetano, é composto de duas palavras: tongpa-nyi. A palavra tonpa significa “vazio”, mas somente no sentido de algo além de nossa habilidade de perceber com nossos sentidos e nossa capacidade de conceitualizar. Talvez uma tradução melhor fosse “inconcebível” ou “que não pode ser nomeado”. A palavra nyi, por sua vez, não tem nenhum significado específico no vocabulário tibetano cotidiano. Mas, ao ser agregada a outra palavra, ela transmite um senso de “possibilidade” — um senso de que tudo pode surgir, tudo pode acontecer. Então, quando os budistas falam da vacuidade, eles não querem dizer “o nada”, mas sim um potencial ilimitado que algo tem de surgir, mudar ou desaparecer.

Talvez possamos usar, neste ponto, uma analogia com o que os físicos contemporâneos aprenderam sobre os estranhos e maravilhosos fenômenos que observam quando examinam o funcionamento interno de um átomo. De acordo com os físicos com os quais conversei, a base de todos os fenômenos subatômicos é muitas vezes chamada de estado de vácuo, o estado de menor energia no universo subatômico. No estado de vácuo, as partículas continuamente aparecem e desaparecem. Assim, apesar de aparentemente vazio, esse estado é, na verdade, muito ativo, repleto do potencial de produzir alguma coisa, qualquer coisa. Nesse sentido, o vácuo compartilha certas características com a “qualidade vazia da mente”. Assim como o vácuo é considerado “vazio”, mas, ao mesmo tempo, é a fonte da qual toda espécie de partículas surge, a mente é essencialmente “vazia” no sentido de que desafia a descrição absoluta. Entretanto, todos os pensamentos, emoções e sensações perpetuamente surgem a partir dessa base indefinível e incompletamente conhecida.

Como a natureza de sua mente é a vacuidade, você possui a capacidade potencialmente ilimitada de vivenciar uma variedade de pensamentos, emoções e sensações. Mesmo os mal-entendidos sobre a vacuidade não passam de fenômenos que surgem da vacuidade! Um simples exemplo pode ajudá-lo a obter algum entendimento da vacuidade em um nível experimental. Alguns anos atrás, um estudante me procurou pedindo ensinamentos sobre a vacuidade.

Dei-lhe as explicações básicas e ele pareceu bem satisfeito — eletrizado, até. “Isso é tão legal!”, ele exclamou ao final de nossa conversa. Minha própria experiência me ensinou que a vacuidade não é tão fácil de entender depois de uma lição, então sugeri que ele passasse os próximos dias meditando sobre o que aprendera. Alguns dias depois, o aluno chegou sem aviso no lado de fora do meu quarto com uma expressão de horror no rosto. Pálido, arqueado e tremendo, ele entrou no quarto vacilante, como alguém que estivesse testando o chão à sua frente para ver se não se tratava de areia movediça.

Quando finalmente parou na minha frente, ele disse: “Rinpoche, você me disse para meditar sobre a vacuidade. Mas, na noite anterior, me ocorreu que, se tudo é vacuidade, então o prédio inteiro é vacuidade, o piso é vacuidade e o chão embaixo do piso é vacuidade. Se esse é o caso, por que todos nós não afundamos e caímos nas profundezas de um buraco no chão?”

Eu esperei até que ele terminasse de falar. Então, perguntei: “Quem cairia?” Ele pensou a respeito por um momento e sua expressão mudou completamente.

“Ah”, ele exclamou, “entendi! Se o prédio é vacuidade e as pessoas são vacuidade, não há ninguém para cair e nada por onde cair”.

Ele soltou um longo suspiro, seu corpo relaxou e a cor voltou a seu rosto. Então, sugeri que ele voltasse a meditar sobre a vacuidade com essa nova compreensão.

Dois ou três dias depois, ele retornou a meu quarto sem aviso. Novamente pálido e trêmulo, ele entrou no quarto e parecia bem evidente que estava fazendo o máximo de esforço para prender a respiração, com medo de expirar o ar. Sentando-se na minha frente, ele disse: “Rinpoche, meditei sobre a vacuidade como você instruiu e entendi que, da mesma forma como o prédio e o chão são vacuidade, também sou vacuidade. Mas, à medida que me mantive seguindo essa linha de meditação, continuei me aprofundando cada vez mais, até que não fui mais capaz de ver ou sentir nada. Se eu não for nada além de vacuidade, tenho medo de morrer. Por isso corri para vê- lo hoje. Se eu for só vacuidade, então basicamente não sou nada, e não há nada para impedir que eu me dissolva no vazio.”

Quando vi que ele havia terminado, perguntei: “Quem se dissolveria?”

Esperei alguns momentos para que ele absorvesse a questão e pressionei mais um pouco: “Você está confundindo vacuidade com vazio. Quase todo mundo comete o mesmo erro no começo, tentando compreender a vacuidade como uma idéia ou um conceito. Eu mesmo cometi esse erro. Não há como entender a vacuidade conceitualmente. Você só pode reconhecê-la de fato por meio da experiência direta. Não estou pedindo que você acredite em mim. Tudo o que estou dizendo é que, nas próximas vezes em que você se sentar para meditar, deve perguntar a si mesmo: ‘Se a natureza de tudo é a vacuidade, quem ou o que pode dissolver-se? Quem ou o que nasce e quem ou o que pode morrer?’ Tente isso e você pode se surpreender com a resposta.” Com um suspiro, ele concordou em tentar de novo.

Vários dias mais tarde, ele voltou a meu quarto, sorrindo tranqüilamente ao anunciar: “Acho que estou começando a entender a vacuidade.” Eu pedi que me explicasse. “Segui suas instruções e, depois de meditar sobre o assunto por um longo tempo, percebi que a vacuidade não é o nada, porque deve haver algo antes de haver o nada. A vacuidade é tudo — todas as possibilidades da existência e da não-existência imagináveis ocorrendo simultaneamente. Assim, se a sua verdadeira natureza for a vacuidade, então não se pode dizer que alguém realmente morre e não se pode dizer que alguém realmente nasce, porque a possibilidade de ser de certa forma e não ser de certa forma está presente dentro de nós em todos os momentos.”

“Muito bem”, eu disse. “Agora esqueça tudo o que você acabou de dizer, porque, se tentar lembrar-se exatamente disso, transformará tudo o que aprendeu em um conceito e precisaremos começar tudo de novo.”

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Foto: divulgação Tergar Brasil.

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4 Comments

  1. says: Alex

    O que o discípulo abordara não era o ego em si como identificação? Na prática resumimos que a vacuidade é o nada que ao mesmo tempo é tudo. Só foi dado uma roupagem menos “triste” – do ponto de vista egóico -para o tema. rsrs

  2. says: Pedro

    Em um primeiro momento me vi perguntando sobre a abordagem não “egóica” do texto, porém depois me fiz entender que até mesmo os conceitos de tristeza e felicidade são as próprias roupagens do ego.

    O texto é o que é, se nós nos sentirmos felizes com ele então nosso ego viu em uma verdade uma visão libertadora da natureza de todas as coisas.

    Se nós acreditarmos que destruir o ego é em tese uma condição “triste” então estaremos condenando nosso budismo à uma visão unilateral de mundo que nada mais é que uma manifestação “egóica” do medo.

    Esta é minha visão do assunto

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