Um hindu pergunta a Jung: quem precisa de menos encarnações pra se salvar, quem ama ou quem odeia Deus?

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Essa história foi contada pelo próprio psiquiatra suíço Carl G. Jung num de seus seminários sobre “A Psicologia da Kundalini Ioga“, de 12 de outubro de 1932, em Zurique, registradas no livro de mesmo nome (The Psychology of Kundalini Yoga):

Uma vez recebi uma pergunta filosófica de um Hindu: “Um homem que ama Deus precisa de mais ou menos encarnações do que um homem que odeia Deus para atingir sua salvação final?” O que você responderia? Eu desisti naturalmente. E ele disse: “O homem que ama Deus precisará de sete encarnações para se tornar perfeito, e o homem que odeia Deus apenas três, porque certamente ele vai pensar em Deus e se agarrar a Ele muito mais do que o que ama Deus”.

De uma certa maneira, isso é verdade; o ódio é um vínculo tremendo. Então para nós a formulação grega phobos (fobia) é talvez mais adequada do que o ódio como princípio de separação. Tem havido, e ainda há, mais participation mystique* na Índia do que na Grécia, e o Ocidente certamente tem uma mente mais discriminatória do que o Oriente. Portanto, como nossa civilização depende amplamente do gênio grego, conosco seria mais o medo do que o ódio.
Carl G. Jung, “The Psychology of Kundalini Yoga”, Palestra 1.

Quantas encarnações de fato para a salvação ninguém sabe, mas a história traz esses dois temas curiosos: o ódio como uma força mais obsessiva do que o amor, e o medo como equivalente ocidental à força mais divisora e fragmentadora da existência humana (segundo Jung e a referência da herança grega). Mesmo que questionemos se o ódio ou o medo são mais obsessivos do que o amor, essa questão é inválida pois no amor já estaria a mencionada salvação final. Assim, o medo (segundo os gregos antigos) ou o ódio seriam os estados emocionais do ser que primordialmente o tiraria do “estado completo” ou “salvo” ou “liberto” ou que quisermos escolher para equivalente ao estado pós-“salvação final”.

Claro que isso não é uma apologia ao medo ou ao ódio (em detrimento ao amor), apenas uma bela historinha psicológica contada por Jung – se for uma apologia, é ao auto-esclarecimento (sobre o que nos fragmenta e nos salva).

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*Participation mystique: conceito criado pelo antropólogo francês Lucien Lévy-Bruhl (1857–1939) que denota uma identificação profunda inconsciente de um indivíduo com outro indivíduo ou com um objeto, que acontece como uma projeção psicológica. Mais sobre esse conceito aqui e aqui.

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6 Comments

  1. says: Mauro

    Acho que pessoas que perguntam a opinião dos outros, antes de oferecerem a própria, querem apenas parecerem ser mais espertas – como se a “palavra final” desse um ar de sabedoria à própria resposta. O Hindu anônimo é um exemplo típico: independente do que Jung respondesse, ele rebateria como se mais sábio fosse. Caso o austríaco respondesse com “aquele que ama”, tome-lhe uma lição sobre como o ódio é um elo “mais forte”; se a resposta fosse “aquele que odeia”, o Hindu daria aquele complemento esclarecedor tipo “olha lá, vc também sabe disso, só não sabe que é devido ao elo mais forte criado pela ódio”. Na minha opinião, o Hindu está equivocado – o ódio nos afasta de Deus, e apenas cria aquela atração que se vê entre dois competidores de MMA antes de uma luta. No mundo moderno, o que observo não é ódio por Deus, mas o crescimento no número de pessoas que nutrem um desprezo pela idéia de Deus – isto é, longe de quererem linchá-Lo, querem apenas negar sua existência e debochar daqueles que acreditam Nele. O ódio é chama que se pode apagar, já o desprezo é como uma pilha de cinzas frias de carvão, que jogamos em cima da cova daquilo que queremos esquecer.

  2. says: Marcos Adilson Rodrigues Júnior

    Pessoas que odeiam e procuram atacar seu inimigo, se preocupam em estudá-lo e entende-lo mais talvez do que pessoas que vão até ele por simples inércia social.

    Por muitos anos fui ateu, e busquei de todas as formas possíveis embasar essa minha crença com lógica, evidências, reflexões e filosofias, atacando cada contradição e paradoxo da religião e de deus. Essa busca ampliou meu conceito sobre divindade, pois me colocou em contato com as mais diversas manifestações religiosas e filosóficas sobre o que vem a ser o divino. Em minhas buscas me permiti experimentar as mais diversas tradições e rituais, bem como ler diversos livros sagrados e argumentos filosóficos.

    Hoje não sou mais Ateu, mas agradeço muito o tempo que odiei Deus, pois foi nesse ódio que me aproximei mais dele, sendo minha vivência hoje muito mais rica de conceitos e possibilidades do que eu fosse apenas mais um que se contenta em acreditar porque simplesmente a maioria acredita.

  3. says: fernando

    Mas… o que é Deus? As pessoas têm noções diferentes do sagrado, acho injusta qualquer pergunta que não defina bem os seus termos… Mas, voltando à questão mesmo assim, se me fosse dado um tempo para refletir (nada como estar lendo um artigo da internet no conforto da poltrona), talvez eu dissesse que amor e ódio são ambos facetas do apego, ambos encobrem a experiência direta do sagrado. Parece-me que a própria ideia de contar as “reencarnações necessárias” já é um combustível para que um renascimento ocorra.

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