Como encontrar disciplina para meditar todos os dias? A pergunta é uma que praticamente todos que começam a praticar a meditação se fazem num momento ou outro da vida, ou em vários momentos. A resposta que estou trazendo abaixo é de Reggie Ray, discípulo, diretor da Dharma Ocean (em Blouder, EUA) e um dos responsáveis por carregar a linhagem de Budismo Vajrayana do célebre mestre tibetano Chögyam Trungpa Rinpoche (1939-1987), e essa resposta foi dada recentemente numa palestra online, em 27 de agosto — transcrita em parte e traduzida para o português pela primeira vez abaixo. O ponto forte da resposta é a questão da integridade, quando Reggie afirma categoricamente que “se você não tem vontade de meditar, você não deveria meditar“. Mas não é tão simples, porque, como Reggie argumenta na sequência, “como seres inteligentes que somos logo percebemos que isso (não meditar) não nos leva a lugar algum”. A resposta inteira segue abaixo, onde ele cita também o ensinamento budista dos “quatro lembretes“, porque a questão talvez se transforme em: “onde vamos encontrar inspiração para (ter vontade de) meditar?“.
Se existe uma prática que é totalmente anulada pela falta de presença, essa prática é a meditação. Na verdade, sempre quando se diz que uma pessoa está fazendo alguma coisa em estado contemplativo ou meditativo, é porque há presença. Há uma aceitação feita ativamente, um presença íntegra. Essa integridade também pode ser traduzida por integralidade, ou plenitude, que é o que a meditação precisa fundamentalmente. Não só a meditação, mas nós, em nosso estado de ser, e por isso também a meditação é essa prática tão importante.
Segue a resposta de Reggie Ray à pergunta, cujo autor é uma pessoa identificada apenas como Nathan. Mais abaixo da resposta transcrita está o vídeo com todo o ensinamento em inglês (a resposta referida está no momento 41:40seg). Gratidão a Reggie Ray e à Dharma Ocean por ensinar e disponibilizar os ensinamentos, e também à Chögyam Trungpa Rinpoche.
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Pergunta (Nathan): Estou tendo dificuldades há algum tempo para estabelecer uma rotina de prática na minha vida. Tenho a idéia que para ter tempo para a prática, talvez tenha que simplificar minha vida e deixar velhos hábitos pra trás. Por exemplo, levantar mais cedo de manhã e reduzir a presença social. Mas não consigo me manter consistente nisso. Peço para falar sobre a importância da disciplina na vida diária e como expandir a prática para além dos retiro.
Reggie Ray: Bem, o negócio é que você não pode se forçar a fazer uma coisa que você não quer fazer. E isso se resume a: onde vamos encontrar inspiração para praticar. Na verdade, você não deveria fazer uma coisa que você não quer fazer. Se você não sentir vontade de praticar, você não deveria praticar. Se você praticar quando não tiver vontade de praticar, será uma perda de integridade da sua parte. Quando você não sente vontade de praticar, o passo de integridade é não praticar. Mas aí, você sabe, somos seres inteligentes e logo vamos perceber que isso não vai nos levar a lugar algum. Então a pergunta é: onde vamos encontrar a inspiração para fazer da prática uma prioridade?
Há um estudo que li recentemente que dizia mais ou menos o seguinte, e estou sintetizando. Basicamente dizia que quando as pessoas ficam mais velhas e começam a perceber que não tem mais muito tempo de vida, é muito mais fácil para elas praticar. Elas se tocavam que o tempo estava acabando e elas percebiam o quão desconectadas e descorporificadas elas estavam de suas próprias vidas, e o quanto elas não estavam presentes para as pessoas que elas amavam e o quanto elas não apreciavam plenamente as coisas que faziam. E essa consciência da morte vindo do outro lado da esquina os leva a ficar profundamente profundamente profundamente apreciativos da prática, comprometidos com a prática. E há um outro grupo de pessoas que, e estamos falando de uma descoberta neurobiológico, vem de uma pesquisa, há um outro grupo que tem a mesma atitude em relação à prática, e essas são pessoas que quando jovens quase morreram. Pessoas que tiveram doenças sérias, pessoas que passaram por acidentes automobilísticos e ficaram em hospitais durante meses, pessoas que de um ponto de vista convencional sofreram coisas muito ruins, eles são o outro grupo. Porque eles perceberam que a morte é de fato uma possibilidade sempre presente e isso os guia para a mesma visão que as pessoas no fim da vida tem.
Então, onde quero chegar é: temos que ser honesto com nós mesmos. Isso é a respeito de nossas vidas. Temos que ser honestos com nós mesmos sobre como perdemos nosso tempo, sobre como ignoramos o fato de que todas as pessoas ao nosso redor da nossa idade que já morreram. Sabe, a capacidade de ignorância humana é imensurável. É inacreditável. O quanto podemos bloquear da realidade auto-evidente.
Então no Budismo temos esse ensinamento maravilhoso chamado “os quatro lembretes”. Quando comecei a praticar não prestei muita atenção a eles, mas hoje sim. Penso que é uma contemplação incrivelmente importante. E o que ele diz é… o primeiro é: o quão preciosa é a vida humana, de verdade. Em uma vida humana podemos ouvir o dharma e temos uma curta duração de vida permitida a nós, e nem sabemos o quão curta ela é. E o lembrete é para apreciar esse fato e não considerar algo dado sem importância. E o segundo é: a morte é real. É definitivamente real. E definitivamente acontece a muitas pessoas, na verdade acontece a todo mundo, cedo ou tarde. E o terceiro é como gastamos nosso tempo vai afetar o que acontece a nós em nossas vidas. Como gastamos nosso tempo vai afetar nosso estado mental, o quão consciente estamos, o quanto desfrutamos da vida, o quanto realmente conseguimos amar outras pessoas… Isso é um ensinamento sobre o Karma. E o quarto é: não vai funcionar. Esse é o ensinamento sobre o sofrimento. O que quer que você esteja pensando que vai funcionar, desista, porque não vai se realizar. E no caso de você achar que vai acontecer na sua vida, olhe para a vida de todas as outras pessoas e perceba como a vida de todas essas pessoas é miserável. Então, na tradição tibetana, você começa suas sessões de meditação usando um dos quatro lembretes, contemplando-o, ou você pode contemplar todos os quatro. Mas o que isso faz é que é um chamado para acordar. Te faz acordar. Para sua situação, para sua vida real. E para as possibilidades que você tem. E vindo disso a prática se torna algo muito natural.
E é isso que acho que realmente tem que acontecer, nossa meditação precisa ser algo que é muito natural ao nosso estado de ser. Mas não vai acontecer até que paremos de achar que nossa vida está dada e ficará sempre aqui. E encarar a situação real.
muito bom e elucidativo. o que gosto nesses textos, vídeos, áudios etc que vc publica, Nando, é como esses pensadores refletem sobre algo que realmente acontece em nossas mentes sem nos conhecer pessoalmente. ou seja, quando alguém nos diz algo presentemente, nossa mente reativa está condicionada a se defender interpretando – intencionalmente – que se trata de um comentário pessoal. no entanto, ao encararmos – sem melindres – todos esses livros, artigos, textos, áudios, vídeos vindos de todos os lugares do planeta, a mente reativa fica encurralada sem poder fazer uso de suas artimanhas, posto que nenhum desses pensadores não apenas nos desconhecem pessoalmente, mas não teriam o menor interesse pessoal em escancarar conflitos pessoais, como geralmente interpretamos (por artimanha da mente dualista) na tentativa de nos defendermos e mantermos o status quo.
Sim, Walter. De certa maneira, todos nós seremos vencidos – ou nos conquistaremos – pelo cansaço. :)