Não sou eu, é você: os conflitos internos e a ilusão da responsabilização dos outros, num livro do Osho

osho_sementedemostardaComo as pessoas se livram dos seus conflitos e inquietações interiores?”, perguntou certa vez o sábio indiano Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho (1931-1990), num discurso feito há mais de 40 anos. “Responsabilizando os outros“, ele mesmo responde, como está no registro do livro “A Semente de Mostarda, Vol 1 – Discursos sobre as palavras de Jesus segundo o Evangelho de Tomé” (Tao Editora e Livraria, 1979). O discurso foi realizado precisamente em 22 de agosto de 1974, na cidade de Puna, na Índia, mas o assunto continua tão ou ainda mais atual, as acusações continuam a se propagar como um comportamento comum e universal em nosso dia-a-dia, quase como se não soubéssemos que é assim, quase como se não tivesse havido uma expansão global da informação com a era das redes nos permitindo assim tomar mais e mais consciência de elucidações já conhecidas há décadas, séculos ou milênios. Ou como se não quiséssemos fazer nenhum trabalho de crescimento interior — “Você luta contra os outros porque é a maneira mais fácil“, explica Osho, no mesmo capítulo do livro.

É dispensável descrever o quanto estamos agindo nesse hábito de responsabilização exterior. Boa parte de nossa cultura está imersa nisso dos pés à cabeça: na mídia, no entretenimento, nas conversas entre amigos, entre família, nos diálogos internos (mentais), nas relações de trabalho: os conflitos internos são projetados, externalizados, as responsabilidades são jogadas sobre os outros, as projeções criam conflitos externos, enquanto mantém os internos obscurecidos e indigestos. Nem fazemos idéia de quais são.

De certa forma, é uma visão básica de Osho sobre a sombra, o lado escuro e obscuro humano, e o mecanismo de projeção, que nos faz ver nos outros o que não queremos ver que existe em nós mesmos. Mas suprimir simplisticamente a responsabilização externa não é a solução: é preciso ter consciência do conflito interno, é preciso um trabalho árduo e gradual sobre si mesmo, pois esses conflitos internos requerem cuidados — como o próprio Osho diz, podemos estar evitando “os conflitos porque são muito dolorosos, por diversas razões”.

No final do último trecho, Osho fala que ao aceitarmos o conflito interior vamos acabar vendo que “somos absolutamente maus”. Mas acredito que essa tenha sido apenas uma força da expressão, e ao mesmo tempo um ensinamento, por um amplo reconhecimento da consciência da maldade, sem fugas. Não há nenhum encontro com a Verdade enquanto algo (como a maldade) realmente continua a ser negado, mas o absoluto no humano está além desses conceitos, e ao mesmo tempo imerso neles.

Três trechos selecionados do mesmo capítulo do citado livro estão abaixo.

[1] “Como as pessoas se livram dos seus conflitos e inquietações interiores? Responsabilizando os outros. Assim, elas passam por uma catarse: tornam-se irritadas, atiram sua raiva e violência nos outros e isso lhes proporciona um alívio, um descanso. Temporariamente, é claro, porque no interior nada mudou. interior continuou velho e novamente acumulará. No dia seguinte, voltará a acumular a mesma coisa — raiva, ódio— e você terá de projetá-lo. A luta contra os outros existe porque você continua acumulando lixo dentro de si e necessita jogá-lo fora. Um homem que conquistou a si mesmo, que se tornou um auto-conquistador, não tem conflitos internos, sua guerra cessou. Dentro de si, existe apenas um — não dois. Tal homem nunca mais irá projetar, nunca mais lutará contra alguém. A mente usa o truque da projeção para esquivar-se do conflito interno porque esse conflito é muito doloroso — por muitas razões. A razão básica é que todas as pessoas têm uma imagem muito boa de si mesmas. E isso é tão forte que sem essa imagem elas quase não conseguem sobreviver.”
— Osho, em “A Semente de Mostarda“, pg.41

(…)

[2] “Mas este é um longo processo, é preciso ter coragem para esperar, é preciso não se deixar tentar pelo atalho. E, na vida, não existem atalhos — eles só existem nas ilusões. A vida é árdua porque só por meio de árduos esforços o crescimento acontece — ele nunca vem facilmente.Você não pode conseguí-lo de um modo barato; nada que é barato pode auxiliá-lo a crescer. O sofrimento auxilia — o próprio esforço, a própria luta, o longo caminho lhe dão a clareza, o crescimento, a experiência, a maturidade. Como uma pessoa pode adquirir a maturidade através de atalhos? Existe uma possibilidade — atualmente estão fazendo experiências com animais e, mais cedo ou mais tarde,trabalharão com seres humanos — existe uma possibilidade: você pode ser injetado com hormônios. Uma criança de dez anos pode receber injeções de hormônio e transformar-se num jovem de vinte anos. Contudo, você acha que ele atingirá a mesma maturidade que teria conseguido se tivesse passado por dez anos de vida? A luta, o surgimento do sexo, a necessidade de controle, de amor; de ser livre e ao mesmo tempo controlado, de ser livre e simultaneamente centrado; de conviver com os outros, de sofrer por amor, de aprender — tudo isso não estará presente. Esse homem que aparentar vinte anos, na realidade terá apenas dez”.
— Osho, em “A Semente de Mostarda“, pg.43

(…)

[3] “A mente encontra atalhos. As ilusões são atalhos. “Maya” o que existe de mais fácil e mais barato para se adquirir. A realidade não, ela é dura, árdua: é preciso sofrer e passar pelo fogo. Quanto mais você passa pelo fogo, mais amadurecido fica; quanto mais amadurece, mais valor adquire. Sua divindade não pode ser comprada num mercado, não pode ser pechinchada. Você tem de pagar por ela toda a sua vida. Apenas quando você arrisca toda sua vida, ela acontece. Você luta contra os outros porque essa é uma maneira fácil. Você fica pensando que é bom, que o outro é que é mau e a luta fica no exterior. Mas se olhar para si mesmo, a luta tornar-se-á interior: verá que é mau, que é difícil encontrar uma pessoa mais demoníaca que você. Se conseguir olhar para dentro, verá que é absolutamente mau e que algo tem de ser feito. Uma luta interior, uma guerra interior será então iniciada. Pelo conflito interno — não se esqueça de que ele é uma técnica, uma das melhores técnicas já utilizadas através dos séculos — se o conflito interno acontece, você se torna integrado. Se o conflito interno existe, surge além das partes conflitantes um novo centro de sabedoria. Se o conflito existe, suas energias são envolvidas, todo o seu ser torna-se agitado: o caos é criado e desse caos nasce um novo ser.”
— Osho, em “A Semente de Mostarda“, pg.45-46

//////////

More from Nando Pereira (Dharmalog.com)
Join the Conversation

5 Comments

  1. says: Ticiana Vasconcelos Silva

    Pois é. Assim é. Lembro-me muito da música (da vida) “Roads” (Portishead).
    Obrigada, Nando. Aos poucos, vou pescando aqui no Dharmalog as sabedorias. Tem bastante coisa. Mas lendo um por dia (aos pouquinhos), vou agregando conhecimento. Admiro seu trabalho.
    Paz.

Leave a comment
Leave a comment

Your email address will not be published. Required fields are marked *