Uma visão do XIV Dalai Lama sobre a origem do sofrimento ou insatisfação na vida humana, ou a Segunda Nobre Verdade

“As Quatro Nobre Verdades são o maior fundamento dos ensinamentos Budistas, e é por isso que são tão importantes. Na verdade, se você não entende as Quatro Nobre Verdades, e se você não experimentou a verdade deste ensinamento pessoalmente, é impossível praticar o Dharma de Buda. Por isso eu sempre fico feliz de ter a oportunidade de explicá-las”.
~ o XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso

O XIV Dalai Lama já falou e explicou algumas vezes as Quatro Nobre Verdades do Buda e um dos seus discursos que está publicado na Internet, datado de 7 de outubro de 1981, dado em Dharmasala (Índia) e preservado pelo trabalho do Berzin Archives, explica brevemente a Segunda Nobre Verdade e a origem do sofrimento, tema que viemos explorando aqui em alguns posts. “A origem última é a mente“, diz o Dalai Lama. Em seguida, explica como o modo como a mente “se apodera” das coisas e transforma a realidade, acabando por criar identidade, possessividade e sofrimento. Ele não cita nominalmente a impermanência (anicca), um dos três fatos básicos da existência segundo o Budismo (junto com o próprio sofrimento ou insatisfação, dukkha, e a insusbtancialidade do eu ou o não-eu, anatta), mas está exposto claramente no modo como ele descreve a mente – como tomamos as coisas por sólidas (e permanentes).

Curiosamente, o Dalai Lama não cita a palavra desejo e nem mesmo a “sede” (tanha), como está no discurso do Buda tal qual preservado do Pali. Concentrando-se na ignorância e nos caminhos desvirtuados da mente, o ensinamento é simples e elucidador, formando um panorama mais amplo e claro para nossa compreensão sobre o assunto.

O Dalai Lama também já escreveu um livro sobre o assunto, intitulado “Four Noble Truths” (1996), disponível na Amazon, e também há vídeos no site oficial com ensinamentos dados em outubro de 2009, também em Dharamsala (Índia), que podem ser assistidos na íntegra em inglês aqui.

Segue o texto, conforme traduzido originalmente por Alexander Berzin.

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“Verdadeiras Origens (do Sofrimento)”
Por XIV Dalai Lama (via Berzin Archives)

(…) Devemos agora investigar a causa do sofrimento. Será que há uma causa ou não? Se houver, que tipo de causa é: uma causa natural que não pode ser eliminada ou uma causa que depende das suas próprias causas e que pode portanto ser eliminada? Se é uma causa que pode ser eliminada, será para nós possível livrarmo-nos dela? Assim, chegamos à segunda nobre verdade: as verdadeiras origens ou verdadeiras causas do sofrimento.

A respeito disto, o Budismo mantém que não há um criador externo e que, embora um Buda seja o ser mais elevado, nem mesmo um Buda tem o poder de criar nova vida. [Ou seja, um Buda não pode criar o sofrimento todo-abrangente que afeta os agregados contaminados de um renascimento futuro.] Então qual é a causa do sofrimento?

Em geral , a origem última é a mente. Especificamente, a mente que é influenciada por emoções perturbadoras tais como a raiva, apego, ciúme, ingenuidade e assim por diante é a causa principal dos renascimentos e de todos os problemas a ele relacionados. Porém, não é possível acabar com a mente, ou interromper o próprio continuum mental. Além disso, não há nada de intrinsecamente errado com o nível mais profundo e mais sutil da mente [a mente de luz clara] em si. [Por natureza, é completamente pura.] No entanto, a mente mais profunda pode ser influenciada por emoções perturbadoras e pensamentos negativos. Assim, a questão é: se podemos ou não lutar e controlar a raiva, o apego e as outras emoções perturbadoras. Se as pudermos erradicar, ficaremos com uma mente pura que estará para sempre livre das causas do sofrimento.

Isto traz-nos às próprias emoções e atitudes perturbadoras, que são tipos de consciência subsidiária ou fatores mentais. Há muitas formas diferentes de apresentar a discussão sobre a mente; mas, em geral, [mente refere-se à atividade mental e a sua]característica definidora é “mera claridade e apercebimento”.[Isto significa a atividade de produzir aparências mentais ou hologramas mentais de objetos e simultaneamente os conhecer , e nada mais]. Quando falamos de emoções perturbadoras tais como o apego e a raiva, temos de ver a forma como elas são capazes de afetar e poluir esta atividade mental, a mente. Qual é, de fato, a sua natureza? Isto, então, é foco principal da discussão sobre as verdadeiras origens do sofrimento.

Se perguntarmos como o apego e a raiva surgem, a resposta é que o seu surgimento é sem dúvida assistido pelo nosso agarramento à existência das coisas como encontráveis e verdadeiramente estabelecidas por seus próprios lados: nosso chamado “agarramento à existência verdadeira”. Por exemplo, quando estamos irritados com algo, sentimos que o objeto está lá fora, sólido, verdadeiro, não-imputado, e que nós próprios somos de igual modo algo sólido e encontrável. Antes de ficarmos irritados, o objeto aparece normalmente; mas quando as nossas mentes são influenciadas pela raiva, o objeto parece feio, completamente repelente, nauseante, algo que nos queremos livrar imediatamente. A sua existência como repelente parece ser estabelecida do seu próprio lado, pela sua própria self-natureza. O objeto parece existir realmente dessa maneira: sólido, independente, e muito feio. Esta aparência de “verdadeiramente feio” estimula a nossa raiva. Porém, quando vemos o mesmo objeto no dia seguinte, quando a nossa raiva desapareceu, parece mais bonito do que no dia anterior. É o mesmo objeto, mas não parece tão mau. Isto mostra como a raiva e o apego são influenciadas pelo nosso agarramento à existência das coisas como encontráveis e verdadeiramente estabelecidas dos seus próprios lados.

Assim, os textos sobre a filosofia Madhyamaka afirmam que a raiz do apego e de todas as emoções perturbadoras é o agarramento à existência verdadeiramente estabelecida, no sentido em que este agarramento produz estes distúrbios mentais, os suporta e os sustenta. Assim, o não-apercebimento ingenuo que se agarra à existência das coisas como verdadeiramente estabelecidas pelas suas próprias naturezas é a fonte fundamental de todos os nossos sofrimentos. Com base neste agarramento à existência verdadeiramente estabelecida, desenvolvemos todos os tipos de emoções e atitudes perturbadoras, e com base nestas nós agimos destrutivamente e acumulamos uma enorme quantidade de força cármica negativa.

Em seu Suplemento aos (“Versos Raiz sobre) O Caminho do Meio”, Madhyamakavatara, (de Nagarjuna), o grande pandita indiano Chandrakirti escreveu que primeiro há o agarramento à existência verdadeiramente estabelecida do “eu”, ao “meu “, e o ficar apegado a esse “meu”. Isso é então seguido pelo agarramento à existência verdadeiramente estabelecida das coisas e pelo ficar apegado a elas como “minhas” e a “eu, como o proprietário delas”.

Ou seja, no início parece haver um “eu” muito sólido, existindo independentemente, que é muito grande – maior do que qualquer outra coisa – e que estabelece a sua existência pelo seu próprio poder. Esta é a base. Daqui, vem a aparência falsa dos outros objetos [e pessoas], como se a sua existência também fosse estabelecida dos seus próprios lados. Com base nisso, vem a aparência da existência de um “eu”, estabelecido verdadeiramente como o proprietário deles como “meus”. Depois, uma vez que tomamos o lado desse “eu”, vem a aparência do “o outro”, estabelecido verdadeiramente como existindo do seu próprio lado, por exemplo como o “meu” inimigo. Em relação a “mim”, ao “eu, o proprietário das coisas”, e às “coisas como ‘minhas’”, surge o apego. Em relação a ele ou ela, nós sentimos distância e raiva. E depois o ciúme e todos esses sentimentos competitivos surgem. Assim, no final, o problema é esse sentimento de “eu” – não o mero “eu”, mas o falso “eu” com o qual nos tornamos obcecados. Isto produz pensamentos de raiva e irritação, juntamente com o dizer de palavras ásperas, e as várias ações físicas baseadas na antipatia e no ódio. Todas estas ações destrutivas do corpo, fala e mente acumulam força cármica negativa.

Matar, mentir, e todas as ações destrutivas semelhantes resultam também da motivação negativa das emoções e atitudes perturbadoras. O primeiro estágio é exclusivamente mental: o pensar de pensamentos destrutivos baseados em emoções e atitudes perturbadoras. No segundo estágio, este pensamento destrutivo leva às ações físicas e verbais destrutivas. Imediatamente, a atmosfera é perturbada. Com a raiva, por exemplo, a atmosfera torna-se tensa; as pessoas sentem-se inquietas. Se alguém ficar furioso, as pessoas meigas tentam evitar essa pessoa. Mais tarde, a pessoa que ficou irritada também se sente embaraçada e envergonhada por ter dito todos os tipos de coisas absurdas, o que quer que lhe veio à mente então .

Quando ficamos irritados, não há espaço para a lógica ou a razão; tornamo-nos literalmente “loucos”. Mais tarde, quando as nossas mentes voltam ao normal, sentimo-nos envergonhados. Não há nada de bom sobre a raiva e o apego; deles não pode resultar nada de bom. Podem ser difíceis de controlar, mas todos nós podemos ver de que não há nada de bom sobre eles. Esta, então, é a segunda verdade nobre.

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32 Comments

  1. says: Thiago

    Obrigado! Gosto muito deste site!

    Venho acompanhando mais os posts de textos Budistas, mas confesso que tenho muita dificuldade em aplica-los. Poderia me sugerir alguma leitura?

    Abraços!

    1. says: crítico

      Sugestão de leitura ^^
      “Você mesmo é o livro real. Você pode lê-lo em qualquer lugar, ninguém pode tirá-lo de você. Sempre que estiver livre, volte-se para Si mesmo. Depois disso você pode ler o que quiser.”
      -Sri Ramana Maharshi

      Para aplicar ^^
      “O conhecimento gratifica o ego. A sabedoria só acontece quando o ego desaparece, é esquecido. O conhecimento pode ser aprendido — as universidades existem para lhe ensinar. A sabedoria não pode ser aprendida, ela é como uma infecção. Você tem que ficar com um sábio, tem que andar com ele, e só então algo começará a se agitar dentro de você.”

      “Quando você é capaz de ver o espelho da sua alma sem a poeira do conhecimento, quando sua alma não está coberta pela poeira do conhecimento, quando ela é somente um espelho, reflete aquilo que é. Isso é sabedoria. Esse reflexo do que é corresponde à sabedoria.”

      “A sabedoria não tem nada a ver com conhecimento, absolutamente nada. Ela tem algo a ver com inocência. Algo da pureza do coração é necessário, algo da vastidão do ser é necessário para que a sabedoria cresça.” -Osho

  2. says: crítico

    Sofrimento e insatisfação também poderia ser chamado de falsa expectativa e frustração.

    “Pare de procurar preencher as expectativas dos outros e pare de esperar que os outros preencham as suas. Lembre-se: se você sofrer, você estará sofrendo por sua causa; se os outros sofrem, eles sofrem por causa deles. Ninguém sofre por causa dos outros – lembre-se disso profundamente. Somente, então, você será capaz de ser realmente sincero para com seu ser interior.”

    “Uma vez que você abandone as expectativas, você aprendeu a viver. Então tudo o que acontece o(a) deixa satisfeito(a), seja o que for. Você nunca fica frustrado, simplesmente porque, em primeiro lugar, você não estava esperando nada. Assim, a frustração é impossível. A frustração é uma sombra da expectativa. Com o abandono da expectativa, a frustração cai por sua própria conta.” -Osho

  3. says: Paulo Faria

    Há um ensinamento do Dalai Lama,ocorrido em Londres em 1996, abordando o tema As Quatro Nobres Verdades, traduzido para o inglês por Thupten Jinpa, que gerou o livro A SIMPLE PATH (Um Caminho Simples). Tenho esse ensinamento em português, 49 páginas. Se o Nando desejar receber, poderei enviá-lo, é só me solicitar. Leio com frequência este ensinamento, considerando a sua preciosidade.

    1. says: Bruno

      Paulo se possível você me envie este ensinamento das Quatro Nobre Verdades por email?

      brunobprudente ARROBA gmail.com

      Muito obrigado.

    2. Paulo, também gostaria, se você puder agradeço: nando ARROBA dharmalog PONTO com.

      NOTA IMPORTANTE: Amigos, editei o endereço de email de vocês como estavam publicados nos comentários para evitar que alguns robôs de spam os capturassem (tentando evitar assim envio de mais lixo). Paulo, a substituição é meio óbvia, mas lhe dá um trabalhinho a mais, de trocar o “arroba” pelo símbolo em si, mas peço que faça para nos ajudar. Obrigado em dobro.

      ABS.
      Nando

    3. says: Thiago

      Olá Paulo e demais companheiros de jornada.
      Paulo, se possível, vc também me poderia envia esse ensinamento de 49 páginas que mencionou?
      Grato

      thiagopn ARROBA hotmail PONTO com

  4. says: Ed Gonçalves

    Destaquei estes dois pontos, pois fizeram muito sentido pra mim… longe de querer criar uma interpretação ultima das palavras de SS o Dalai Lama, compartilho com os amigos meu “apercebimento”.

    //…mente refere-se à atividade mental e a sua característica definidora é “mera claridade e apercebimento”.Isto significa a atividade de produzir aparências mentais ou hologramas mentais de objetos e simultaneamente os conhecer , e nada mais…\\

    Esta é boa!, Sua profundidade pode passar despercebida, é comum nos perdermos/prendermos nas palavras dos mestres e não captar seu sentido verdadeiro. Esqueçamos as palavras e vejamos a verdade disso AQUI e AGORA!

    //…O apego e a raiva surgem pelo nosso agarramento à existência das coisas como encontráveis e verdadeiramente estabelecidas por seus próprios lados: nosso chamado “agarramento à existência verdadeira….\\

    Essa conclui! É esse “agaramento” que menciona SS que nos dá a experiência da impermanência de “Coisas/dharmas” que terminam ou morrem. Mas esses dharmas são em última instância vazias e sem self, logo num sentido ultimo não há “impermanência de coisas” só há impermanência enquanto mudança contínua, (“não surgem nem findam, nem impuros nem puros, são destituídos de acréscimos ou perdas”). SS fala a partir desta dimensão, como o prórpio Avolokiteshvara fala diretamente a Shariputra.

    Sou grato!
    _/\_

  5. says: crítico

    “A brisa que vem do mar já não pode me alcançar
    Só peço ao pai que me devolva o bem estar
    Pois tenho fé em cristo que a luz me guiará
    E assim quem sabe ao desfrutar desse luar
    A lua que me fascina, hoje ela pode me mostrar
    Que o ódio mata só o amor que pode nos salvar
    Mantendo minha fé eu sei que um dia eu chego lá
    E a brisa que vem do mar, e a brisa que vem do mar.”

    “Imaginava liberdade, aclamava por harmonia
    Voz do povo retumbante implorava, pedia, queria, dizia
    Chega de hipocrisia, mentira, mania de viver e fazer de sua vida fantasia
    Achar que tudo já conhece, achar que tudo sabe,
    Achar que é o dono do céu, da terra e também dos sete mares
    Seu tempo é valioso mas por dentro nada vale
    Carniceiro, ignorante, autoridade, falsidade.”

    “Bata palma, por quanto vocês vão vender sua alma?
    Nossa fauna não é salva da jaula causando um trauma
    Suas aula não são eficaz, cês fazem guerra atrás de paz
    Nos viciam no temor do antraz e em ataques bilaterais
    Multidões um dia entenderão minhas previsões
    Ofuscaram a luz do fim do túnel e cegaram suas visões
    Ilusões, igual mágica alteram suas noções
    Quero novas opções que deem fim as corrupções”

    “…
    Toda minha vida se passa na aleda num momento de reflexão, divi…
    Vida banida por causa de confusão
    Mas to nessa justamente pela paz e a união
    Pras pessoas que falam mal da minha letra ou do improviso
    F***-se escrevo o que vivo não digo o que lí no livro
    Tá indeciso? é lula e eu arranco os seus tentáculos
    É a mãe vida que me ensina a passar por cima dos obstáculos”

    “Pensamento detido, algo do seu convívio,
    Excesso de simpatia não cola, gera o início de um conflito,
    Depois só se encontra a resposta subjulgado no infinitivo
    Presente pretérito quase mais que perfeito se apresentam no diminutivo,
    Fez permanecer arrogância, prevalecendo a lei do inimigo do porco bandido
    do falso rabino sistema abusivo
    Que imposta taxas, valores em cifras, que gera miséria, gerando mendigo,conecd”
    ^
    _/=\_

  6. says: Vitor

    Imensa gratidão por conhecer esse blog! Meus Parabéns ao Nando e toda equipe que trabalha para manter o Dharmalog. A cada dia que passa, vejo a evolução constante que o site busca. Rico em conteúdo, beleza e inspiração..
    Mais uma vez, muitíssimo obrigado!

  7. says: Robson Rossit

    “O desconhecimento da origem dos inúmeros transtornos comportamentais humanos é a maior causa dos aborrecimentos entre as pessoas e a maior causa do alívio desses aborrecimentos é outro ser verdadeiramente humano”. O livro DAF: A Essência Perdida de I. di Renzo, em e-book na Amazon, aponta que a ingestão de bebidas alcoólicas antes da concepção gera pessoas que apresentam comportamentos desviantes e difíceis de compreender e que desde Buda já era uma preocupação e que até hoje nunca foram entendidos. De nada adianta tentar ensinar humanidade à quem nasce fisiologicamente sem ela e consolar, recomendando autosacrifícios à quem nasce plenamente humano.

  8. says: Itajacy

    Paulo queria muito receber o livro um caminho simples e as quators nobres verdades, vivo na Espanhã e me separei faz 4 meses preciso de livros que me ajude. Obrigada

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