A vida não-vivida de Erich Fromm na poesia de Jaan Kaplinski: “o que não cresce pra cima, cresce pra baixo”

Que maravilha uma poesia expressar dessa maneira a visão de um autor, como faz o mais famoso e mais traduzido escritor estoniano da atualidade, Jaan Kaplinski, neste poema construído sobre a frase de Erich Fromm (1900-1980) e replicada aqui no blog, no post imediatamente anterior a este – “A destrutividade é a consequência de uma vida não vivida”: Erich Fromm explica a energia pela vida e pela destruição (27/06/2013). A poesia começa e termina com essa frase e carrega no seu corpo a voz de uma terceira pessoa que vê os efeitos da destrutividade e outra voz que se sente destrutiva, não vivida, “furiosa”.

Curiosidade: o ano quem Jaan Kaplisnki nasceu (1941) foi o ano em que Erich Fromm publicou seu primeiro livro, “O Medo à Liberdade” (Escape From Freedom), justamente o que contém a frase que dá título a esse poema.

Nota da tradução. Na versão em inglês, a expressão “grow up” pode significar literalmente “crescer pra cima“, como uma planta faz, simbolizando o crescimento natural inerente de qualquer ser vivo, mas também pode significar “amadurecer” ou “evoluir“. Neste caso, ao invés da planta buscar outro caminho “por baixo”, o significado seria de “regredir“, ou “diminuir” (embora “grow down” possa ser usado num sentido positivo, como “virar criança”, que não é o caso neste poema). Assim, outras alternativas seriam possíveis, como “o que não se abre, se fecha”, ou “o que não se expressa, se suprime”, ou ainda, usando apenas o “up” e “down” como se usa na expressão “grow weary” (ir se cansando, ou ficar cada vez mais cansado), “grow up” seria “ficar mais ativo ou vivo” e “grow down” seria “ficar mais triste ou sem vida”. Na tradução para o português preferi o mais coloquial e literal – “o que não cresce pra cima, cresce pra baixo” – pela capacidade de compreensão mais instantânea e por essas expressões carregaram melhor o sentido da “força natural da vida”, sem nuances de superioridade e sem nomear sentimentos.

Seguem as três traduções, em inglês e espanhol, como feitas pelo autor, e em português, por este blog.

EM PORTUGUÊS, livremente por Nando Pereira baseado na tradução em inglês e espanhol de Jaan Kaplinski:

O desejo de destruir é resultado da vida não vivida.
O que não cresce pra cima, cresce pra baixo —
unhas e pelos de barba pra dentro da carne, desejos não correspondidos
calcificam nossos vasos sanguíneos, a inveja
se transforma em úlceras, a tristeza em piolhos,
a mesquinhez em moscas. Somos sempre,
de uma certa maneira, cavaleiros errantes; estamos sempre procurando
por algo para lutar por ou contra, a quem
odiar com um ódio justo. Essa vida não-vivida
é como um pote de água fervendo em nossas mãos
que nós corremos pra soltar, e não há
tempo para mais nada, estamos furiosos
com todos os que sentam tranquilamente
em suas mesas de jantar e falam
sobre Erich Fromm e que o desejo de destruir
é o resultado de uma vida não-vivida”.
~ Jaan Kaplinski, Destruktivität ist das Ergebnis ungelebten Lebens (1985)

 

EM ESPANHOL, no site do próprio autor:

El deseo de destrucción es el resultado
de la vida no vivida.
Lo que no puede crecer hacia afuera crece
hacia adentro, las uñas y el pelo de la barba
en el cuerpo, los deseos no cumplidos en
la cal de las paredes interiores de las venas,
la envidia en las úlceras de estómago,
la mente deprimida en los piojos, la suciedad
en las moscas. Somos como caballeros andantes,
no dejamos de preguntarnos por qué y contra qué
luchar, a quién odiar en justicia. Esta vida
no vivida es como una jarra de agua caliente
que queremos soltar cuanto antes, de modo que
no estamos para nada más y sentimos rencor
por quienes permanecen sentados tranquilamente
a la mesa del comedor y hablan de Erich Fromm y
de que el deseo de destrucción es el resultado
de la vida no vivida.
Jaan KaplisnkiDestruktivität ist das Ergebnis ungelebten Lebens (1985)

 

EM INGLÊS, traduzido do original alemão pelo autor com Sam Hamill e Riina Tamm.

Destructivity is the result of an unlived life.
What cannot grow up grows down —
nails and hairs of the beard into the flesh, unrequited desires
calcifying our blood vessels, envy
changing into ulcers, sadness into lice,
dirt into flies. We are always,
in a way, wandering knights; we are always looking
for what to fight for and against, whom
to hate with a just hatred. This unlived life
is like a boiling water pot in our hands
which we hurry to put away, and there
is no time for anything else, and we are angry
at all who sit quietly
around the kitchen table and talk
about Erich Fromm and that destructivity
is the result of an unlived life.
~ Jaan Kaplisnki, Destruktivität ist das Ergebnis ungelebten Lebens (1985)

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Foto: still do filme The Kaplinski System.

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7 Comments

  1. says: Marco A. Soares

    Muito belo e provocante!
    Parabéns pelo trabalho de nos brindarem com sabedoria!

    P.s.: uma correção na tradução: “por algo para ‘lutar’ por ou contra”

    Abraços fraternos,

    Marco

  2. says: Gilmar Coimbra

    Respeito a percepção, os pontos de vistas e as vivências das pessoas. Cada um tem a sua. Mas, tenho comigo que A Vida É como É.
    Ninguém tem capacidade de descrever e/ou relatar coisa alguma do ponto de vista humano, acima do que é humano.
    As coisas ‘são como são’! O que há mais?

  3. says: Parvati

    Voce ficou maravilhado com a capacidade de expressão da poesia, por coincidencia eu havia ficado, no post anterior, abismada com a capacidade do autor de dar atenção ao cliente ao ponto de conseguir criar a ‘ incômoda’ formulação, título da poesia citada aqui.
    Supondo que o próprio Erich não sofresse por faltar-lhe sentido à vida, ou sentisse bloqueada sua capacidade de expressão e sensibilidade, necessitaria de uma estupenda capacidade de compreensão, empatia, amor ou simples atenção, para conseguir traduzir em palavras os sons vindos de lá das profundezas do sofrimento de seus clientes.

    1. Parvati, o post anterior em si (!) é uma admiração à percepção humana profunda do autor com seus pacientes. Apesar do Fromm falar da destrutividade não como repressão desse ou daquele desejo, mas da vida como um todo, me interesso muito por estudar as “tendências hostis particulares” que crescem conforme a energia da vida é cerceada, e é isso que está um pouco presente aqui nesse poema do Kaplinski – nas unhas, na úlcera, nos piolhos.

      Alguns outros psicólogos tiveram insights parecidos, como o Perls, que associava até pequenos gestos que demostravam retroflexão aos problemas de contato e expressão dessa energia natural viva. E, consequentemente, parte deles à hostilidade contra si mesmo ou contra os outros.

      Dois admiráveis trabalhos de compreensão, atenção e percepção da psicologia.

      Namastê!

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