O Resultado do Samsara é o Sofrimento; o Resultado do Dharma é a Felicidade: Tsenzhab Serkong Rinpoche

Que todos parecem estar correndo atrás da (sua própria noção de) felicidade, parece claro. Se vão alcançar e quando, vai depender de quanto Dharma houver nessa busca — é o que diz mais ou menos, com suas próprias palavras, o lama tibetano Tsenzhab Serking Rinpoche (1914-1983), um dos tutores do atual XIV Dalai Lama, Tenzin Gyatso, no texto abaixo, “O Resultado do Samsara é o Sofrimento; o Resultado do Dharma é a Felicidade“, do Benzin Archives. Comparando as formas comuns de busca da felicidade com o Dharma, Tsenzhab Serking diz: “Algumas pessoas roubam e matam para ganhar a vida. Pensam que isso lhes trará a felicidade. Outros tentam alcançar a felicidade dentro dos limites da lei, como comerciantes, fazendeiros e assim por diante. Muitas pessoas tornam-se muito ricas e famosas com estes métodos. Este tipo de felicidade não é algo que possa durar para sempre; não é a felicidade última”.

Aqui aparece novamente a citação à “felicidade última“, ou “felicidade suprema“, que estava nos textos postados aqui semana passada sobre a iluminação do Buda – “Afinal o que é o Nirvana? O que é a felicidade suprema que Buda Gautama penetrou e ensinou?“. Algumas pessoas não acreditam na existência de tal felicidade, embora o próprio Buda tenha citado várias vezes ela (como no Dhammapada), e talvez também não tenham muita confianca na existência do que se chama de Dharma. É necessário estudo sincero e profundo: “No Dharma, os entendimentos e os insights surgem muito lentamente. Não em alguns dias, semanas ou meses. Na verdade, são muito poucos os seres humanos que pensam sobre o Dharma, muito menos os que o compreendem. Precisamos de trabalhar nisto consistentemente durante um longo período de tempo.”, diz Tsenzhab Serking.

Com explicações que unem uma linguagem contemporânea comum e acessível a alguns conceitos mais conhecidos do Budismo, como a noção das “10 ações negativas” ou das “84 mil delusões” (além do próprio samsara), Tsenzhab Serking reafirma a importância do dharma, não como dogma, mas como conhecimento da realidade para a felicidade mental.

Segue o texto abaixo, com agradecimentos ao belo trabalho de Alexander Berzin e seu rico site berzinarchives.com.

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O Resultado do Samsara é o Sofrimento; o Resultado do Dharma é a Felicidade
Por Tsenzhab Serkong Rinpoche I
Em Longueuil, Quebec, Canadá, 19 de Agosto de 1980
Tradução de Alexander Berzin

Todos os seres desejam ser felizes, ninguém deseja ser infeliz. O Dharma ensina métodos para a libertação do sofrimento e a obtenção da felicidade. O Dharma que praticamos é literalmente algo que nos sustém. Isto pode ser explicado de várias formas: protege-nos do sofrimento e contém todas as verdadeiras fontes da felicidade.

A felicidade pode ser física ou mental. Também há dois tipos de sofrimento: físico e mental. Muitos de nós, embora desejemos alcançar a felicidade, ignoramos os métodos para a alcançar. Os métodos que usamos levam-nos ao sofrimento.

Algumas pessoas roubam e matam para ganhar a vida. Pensam que isso lhes trará a felicidade. Esse não é o caso. Muitos outros tentam alcançar a felicidade dentro dos limites da lei, como comerciantes, fazendeiros e assim por diante. Muitas pessoas tornam-se muito ricas e famosas com estes métodos. Este tipo de felicidade não é algo que possa durar para sempre; não é a felicidade última. Não importa quanta felicidade ou bens materiais tenhamos, nunca sentimos que o que temos é suficiente. Mesmo se possuíssemos um país inteiro, nós quereríamos mais.

O trabalho que fazemos para alcançar a felicidade nunca acaba. Tentamos nos mover usando os meios mais rápidos que pudermos, carros, etc. – este tipo de perseguição não tem fim. Por isso dizem que a existência samsárica não tem fim, que anda simplesmente às voltas. Todos nós podemos compreender isso: as atividades mundanas nunca acabam.

As flores são frescas quando novas, definham quando envelhecem. O que quer que obtenhamos nesta vida chegará a um fim. Chegará ao fim com o passar do tempo, com o fim das nossas vidas, onde teremos o maior sofrimento. Por exemplo, os automóveis. Passamos por cemitérios de automóveis onde os carros velhos foram atirados para a sucata. Este é o fim último, num estado onde tudo se transformou em destroços. Mesmo quando os carros estão em boas condições, nós nos preocupamos com eles. Preocupamo-nos com as peças que se poderão estragar, com o pagamento de impostos e seguros, etc., etc. Podemos aplicar este exemplo a todas as nossas posses materiais. Quanto mais temos, mais preocupações com elas teremos.

Dharma é aquilo que ensina o método para a obtenção da felicidade mental. Para a obtenção de qualquer tipo de felicidade mental nós não fazemos trabalho físico: precisamos de trabalhar com as nossas mentes. Contudo, a mente tem um longo fluxo de continuidade, até vidas futuras e vidas passadas. Em cada vida, nós temos um corpo e tentamos dar felicidade a esse corpo, mas na morte a mente continua. Assim, a felicidade que devemos desejar é não só uma felicidade grande e estável, mas uma que dure por todas as nossas vidas futuras e que não tenha interrupções na sua continuidade.

Não importa que tipo de atividades façamos, construtivas ou não, isso não é Dharma; mas ações positivas feitas para o bem das nossas vidas futuras, isso sim é o Dharma.

A felicidade ou infelicidade vem das nossas ações. Relativamente a essas ações cármicas, as ações negativas produzem resultados negativos e as ações positivas produzem resultados positivos. Qualquer coisa que consigamos fazer bem nesta vida, tal como plantar campos e assim por diante, é o resultado de ações positivas que cometemos nas nossas vidas anteriores. Se formos muito doentes, infelizes ou se tivermos vidas curtas, isso é o resultado das ações negativas que cometemos no passado.

Por exemplo: dois comerciantes, um bem sucedido e outro não. Isto é devido ao carma anterior. Podemos ver dois homens de negócios, um muito trabalhador mas sem sucesso e outro que não trabalha muito mas é bem sucedido. Outro exemplo: se matarmos seres vivos, teremos doenças e uma vida curta. Podem perguntar aqui ao vosso Geshe-la sobre tudo isto.

Se nos abstivermos de cometer essas ações negativas, não renasceremos num reino inferior, mas como um ser humano ou nos reinos dos deuses. Mas mesmo se renascermos como ser humano ou como um deus, isto não nos trará a felicidade última – tudo é da natureza do sofrimento. É assim por quê? Se atingirmos uma posição elevada, cairemos para uma baixa; se estivermos numa posição baixa, subiremos a uma mais elevada. Isto causa um enorme sofrimento. Por exemplo, se estivermos com fome, comemos algo; mas se comermos demasiado, então ficaremos doentes. Se estivermos com frio, ligamos o aquecimento e ficamos demasiado quentes; então teremos de nos refrescar. Há todo este tipo de sofrimentos.

O samsara (existência incontrolavelmente recorrente) consiste deste tipo de sofrimentos. É o resultado do carma e das várias emoções e atitudes perturbadoras. Precisamos de desenvolver a sabedoria (consciência discernente) do vazio ou ausência de identidade.

Como exemplos, podemos ver aqueles que chegaram ao fim do seu samsara, os dezasseis arhats e vários outros aryas que alcançaram esse estado. Embora possamos pôr um fim à nossa própria existência samsárica, fazê-lo não seria suficiente pois ninguém foi mais bondoso para nós do que todos os seres limitados (seres sencientes). Os produtos lácteos vêm da bondade dos animais. Se apreciamos a carne, esta vem dos animais abatidos enquanto ainda saudáveis. No inverno usamos casacos de pele e lãs, que vêm dos animais. Eles são muito bondosos por nos darem tudo isso. Nós precisamos de retribuir a bondade de todos os seres vivos, alcançando nós próprios o estado búdico – poderemos então realizar os objetivos de todos os seres limitados.

Os sravakas e arhats não podem realizar todos os objetivos dos seres limitados. Só um Buda o pode fazer; por isso, o que devemos fazer a fim de realmente os ajudar é tornarmo-nos nós próprios em Budas.

Como fazer isso? Seguindo o Dharma. Na India, havia os mahasiddhas, altamente realizados, sobre cujas vidas temos oitenta estórias, embora haja na verdade estórias sem conta. Eles atingem a iluminação durante as suas próprias vidas. No Tibete, temos o exemplo de Milarepa e de muitos outros grandes mestres das escolas Kagyu, Nyingma, Sakya e Gelug.

Quando atingimos o estado búdico, os nossos esforços dhármicos chegam ao fim. De início, o trabalho que fazemos no Dharma é muito difícil, mas torna-se cada vez mais fácil e ao progredirmos tornamo-nos cada vez mais felizes. Acabamos o nosso trabalho dhármico num estado de completa felicidade. O trabalho mundano apenas nos traz mais sofrimento.

Por exemplo, quando as pessoas morrem, [o fato das] suas vidas alcançarem a sua culminação ou ponto final na morte não só causa infelicidade e sofrimento a elas próprias como também àqueles que ficam no momento dos seus funerais. Precisamos de pensar sobre isto e de fazer algum tipo de trabalho dhármico. Alcançar o cúmulo ou o ponto final do Dharma com a aquisição da iluminação só traz a felicidade, não só a nós como também a todos os outros.

Precisamos de evitar cometer as dez ações negativas. Se cometermos ações positivas experienciaremos a felicidade, e se cometermos ações negativas experienciaremos a infelicidade. Precisamos de examinar os resultados das nossas ações e examinar nossas próprias mentes como causas das nossas ações. Quando as examinamos, verificamos que temos as três emoções e atitudes venenosas: o desejo, a hostilidade e a ignorância obtusa (ingenuidade).

Destas, obtemos os 84.000 tipos de emoções e atitudes perturbadoras. Estas 84.000 delusões são os nossos principais inimigos, por isso procuramos os nossos inimigos dentro de nós, e não à nossa volta. Destes 84.000, os principais são estes três venenos, e o pior é a ignorância ou a ingenuidade obtusa cá dentro dos nossos próprios fluxos mentais.

Resumindo, precisamos de olhar para dentro de nós e tentar eliminar estes inimigos internos. É por isso que os seguidores do Dharma são chamados “insiders” (nang-pa), porque olham sempre para dentro de si próprios. Se eliminarmos estas emoções e atitudes perturbadoras dos nossos continuums mentais, então eliminaremos todo o nosso sofrimento. Uma pessoa que trabalhe para fazer isto é conhecida como uma que segue o Dharma.

A atividade dhármica de alguém que trabalhe apenas para eliminar as suas próprias emoções e atitudes perturbadoras é a atividade dhármica do veículo Hinayana. Se trabalharmos para eliminar as nossas delusões não só para nos livrarmos do nosso próprio sofrimento como também o dos outros, considerando-os mais importantes, e nos esforçando por superar as nossas delusões por forma a também podermos ajudá-los a remover as emoções e atitudes perturbadoras das suas mentes, então somos praticantes Mahayana. Com este corpo como nossa base de trabalho, precisamos de tentar nos tornar Mahayanistas, com vista a conseguirmos alcançar como resultado o estado iluminado de Buda.

O ponto principal é tentarmos sempre beneficiar a todos e nunca fazermos nenhum mal a ninguém. Se recitarmos “Om Mani Padme Hum”, precisamos de pensar: “que a força positiva desta recitação beneficie todos os seres limitados”.

Estes corpos que temos, como nossas bases de trabalho, são difíceis de obter: o nascimento como ser humano não acontece facilmente. Olhem por exemplo para o globo. A maior parte é oceano, e pensem na quantidade de peixes que existe em todos estes oceanos. As formas de vida em maior quantidade estão nos animais e nos insetos. Se pensarmos em todo o planeta e na quantidade de animais e insetos que existe, verificaremos a raridade do nascimento como ser humano.

No Dharma, os entendimentos e os insights surgem muito lentamente. Não em alguns dias, semanas ou meses. Na verdade, são muito poucos os seres humanos que pensam sobre o Dharma, muito menos os que o compreendem. Precisamos de trabalhar nisto consistentemente durante um longo período de tempo. Vocês têm aqui um Geshe bem qualificado que pode responder a todas as vossas perguntas. A longo prazo, o Dharma continuará a crescer e se propagará. Ainda está aumentando e está muito vivo. Quando Buda ensinou pela primeira vez, ele tinha apenas cinco discípulos. Espalhou-se [a partir] destas pessoas, e agora está presente numa grande extensão.

Nós temos agora alguém semelhante a Shakyamuni, Sua Santidade o Dalai Lama, que cá estará em Outubro. Quaisquer ensinamentos que Sua Santidade vos venha dar, levem-nos a sério e pratiquem-nos com sinceridade. A essência dos ensinamentos é nunca prejudicarmos ninguém e não termos pensamentos nocivos – tentem apenas beneficiar a todos. Este é o objetivo principal. Se agirem deste modo, isso trará grande benefício no futuro.

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4 Comments

  1. says: Maria Lidia Saar
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