Shunryu Suzuki explica a prática Zen de viver como uma fogueira, se consumindo completamente, sem deixar rastros

Mente Zen, Mente de Principiante” é um dos livros mais suscintos e claros para a introdução à filosofia e prática do Zen Budismo, contendo palestras do monge Zen japonês Shunryu Suzuki (1904-1971), da Escola Soto Zen, e o trecho abaixo mostra o especial entendimento do Zen sobre os pensamentos e o apego, falando sobre o viver inteiramente no momento presente, “como uma fogueira, se consumindo completamente”. De maneira muito simples e clara, Suzuki fala sobre o agir entoxicado por pensamentos, e como esse pensar deixa rastros, criando o que chama de uma mente complicada. “O pensamento correto não deixa sombras“, diz ele.

As palestras foram proferidas em 1970, no centro Zen de Los Altos, na Califórnia (EUA), e selecionadas por discípulos de Suzuki. A tradução para o português é de Odete Lara na edição da Palas Athena.

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Sem Deixar Rastros” [TRECHO de “Mente Zen, Mente de Principiante”] Por Shunryu Suzuki

“Ao fazer alguma coisa você deve se consumir completamente, como uma boa fogueira, sem deixar rastro de si próprio.”

Quando praticamos zazen (meditação), nossa mente está calma e livre de complicações. Porém, normalmente está muito ocupada e emaranhada, e é difícil concentrar-se naquilo que se está fazendo. Isso acontece porque antes de agir pensamos e esse pensar deixa rastros. Nossa atividade fica ofuscada pela sombra de uma idéia preconcebida. O pensar não só deixa rastros ou sombras, também nos dá muitas outras noções sobre diferentes atividades e coisas. Esses rastros e idéias tornam nossa mente muito complicada. Quando fazemos uma coisa com a mente clara e livre de complicações, não temos idéias ou sombras, e nossa atividade é vigorosa e direta. Mas quando fazemos algo com uma mente complicada, isto é, envolvida com outras coisas ou pessoas, nossa atividade se torna muito complexa.

A maioria das pessoas tem idéias duplas ou triplas numa mesma atividade. Existe um dito: “Caçar dois passarinhos com uma pedra só”.* Isso é o que habitualmente as pessoas tentam fazer. Porque querem caçar pássaros demais, acham difícil concentrar-se em uma só atividade e podem não caçar pássaro algum! Essa maneira de pensar sempre deixa sombras na atividade dessas pessoas. Na realidade, a sombra não é o próprio pensamento. Claro que muitas vezes é necessário pensar, ou preparar-nos antes de agir. Mas o pensamento correto não deixa sombras. Pensamento que deixa rastros provém de uma mente confusa e relativa. Mente relativa é a que se estabelece a si mesma em relação a outras coisas, autolimitando-se. É essa mente pequena que cria idéias de ganho e deixa rastros.Se você deixar rastros de seu pensamento em sua atividade, ficará apegado aos rastros. Você poderá dizer, por exemplo, “isto é o que fiz”. Mas de fato não é assim. Rememorando o feito, é possível que você diga “eu fiz isto e aquilo desse jeito”, porém oque você diz não corresponde ao que realmente aconteceu. Ao pensar dessa maneira, você está limitando a experiência real do que fez. Portanto, se você se apega à idéia do que fez, você está implicado em idéias egoístas. Freqüentemente achamos bom o que fizemos, mas de fato pode não ter sido assim. Quando envelhecemos, em geral ficamos orgulhosos daquilo que fizemos. As pessoas acham graça quando ouvem alguém falando com orgulho de algo que fez porque sabem que a memória dessa pessoa está sendo tendenciosa. Sabem que o que a pessoa está dizendo não é exatamente o que ela fez. Além do mais, se uma pessoa se orgulha do que fez, o orgulho vai criar-lhe problemas. Repetindo suas lembranças dessa forma, sua personalidade irá se distorcendo mais e mais, até se tornar uma criatura desagradável e teimosa. Este é um exemplo de como o pensamento deixa rastros. Nós não devemos esquecer o que fizemos, desde que a lembrança esteja livre de rastros adicionais. Deixar rastros não é o mesmo que lembrar alguma coisa. É necessário lembrar o que fizemos, mas não devemos apegar-nos ao que fizemos em nenhum sentido especial.

O que chamamos de “apego” são simplesmente esses rastrosdo nosso pensamento e atividade.A fim de não deixar rastros ao fazer alguma coisa, você temde fazê-la com todo o seu corpo e a sua mente; deve estar concentrado naquilo que está fazendo. Faça inteiramente, como umaboa fogueira, e não como uma fogueira que apenas faz fumaça.Você deve consumir-se por completo. Se não arder completamente, rastros de você mesmo serão deixados naquilo que fizer.Ficarão resíduos que não se consumiram. Atividade Zen é aquela que se consome inteiramente sem deixar nada além de cinzas.Esse é o objetivo de nossa prática. É isso o que Dogen quis dizercom: “Cinzas não voltam a ser lenha”. Cinzas são cinzas. Cinzas devem ser cinzas. Lenha, lenha. Quando ocorre este tipo deatividade, uma só atividade abarca tudo.Portanto, nossa prática não é uma questão de uma ou duashoras, um dia ou um ano. Se você pratica zazen com todo o seu corpo e a sua mente, mesmo por um momento apenas, isso é zazen.

Momento após momento você tem que dedicar-se à sua prática. Não deve ficar resíduo algum depois de ter feito algo. Mas isto não quer dizer que se deva esquecer tudo a esse respeito. Se você entender este ponto, todo pensamento dualista etodos os problemas da vida se dissiparão. Quando você pratica Zen você se torna um com o Zen. Não há você e não há zazen.

Ao inclinar-se em reverência, não há Buda, não há você. O que acontece é uma reverência plena, issoé tudo. Isto é nirvana. Ao transmitir esta prática a Maha Kashya-pa, o Buda simplesmente apanhou uma flor, com um sorriso. Apenas Maha Kashyapa entendeu o que ele quis dizer com isso – ninguém mais compreendeu. Não sabemos se esse evento éhistórico ou não, mas ele tem um significado. É uma demonstração do caminho da nossa tradição. Uma atividade que abarcatudo é a verdadeira atividade, e o segredo desta atividade foi transmitido desde o Buda até nós. Esta é a prática do Zen e não um punhado de ensinamentos dados pelo Buda, ou algumas regras de vida estabelecidas por ele. Os ensinamentos ou as regras devem mudar de acordo com o lugar e com as pessoas que os observam, mas o segredo desta prática não pode ser mudado. É sempre verdadeiro.P ortanto, para nós não há outra forma de viver neste mundo. Tenho isso como certo, e é fácil de aceitar, de entender e depraticar. Se você comparar o tipo de vida baseado nesta prática com o que está acontecendo no mundo, ou na sociedade humana, descobrirá quão valiosa é a verdade que o Buda nos legou. É muito simples, e a prática é simples também. Mas, ainda assim, não devemos desconsiderá-la; seu grande valor tem que ser descoberto. Em geral, quando algo é muito simples, dizemos: “Ah,eu sei disso! É muito simples. Qualquer um sabe”. Mas se não descobrimos seu valor, nada significa. É o mesmo que não saber. Quanto mais você entende a sociedade contemporânea, maisvocê percebe como é verdadeiro e necessário este ensinamento.Em lugar de ficar apenas criticando sua cultura, você deve devotar sua mente e corpo à prática deste caminho simples. Então, a sociedade e a cultura se desenvolverão a partir de você. Talvez o fato de serem críticos seja válido para aqueles demasiado apegados à sua cultura . Sua atitude crítica indica que estão voltando à verdade simples deixada pelo Buda. Nosso procedimento, entretanto, é apenas concentrar-nos numa prática simples e básica, num entendimento simples e básico da vida. Nossas atividades não devem deixar rastros. Não devemos nos apegar a idéias fantasiosas ou a coisas bonitas. Não devemos ir em busca de algo bom. A verdade está sempre à mão, ao seu alcance.

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6 Comments

  1. says: jacqueline thomasi

    Esta é a chamada “descontrução” de tudo que nos foi ensinado;é a percepção e a consciencia de todos os padrões de comportamento que adquirimos durante toda nossa vida e os padrões que trazemos em nossa carga genética. Sair desta roda que nos deixa prezos é a busca e a inspiração pra nossas vidas…dentro de cada corpo habita uma alma que tem intrínsicamente a ânsia de Ser e estar bem e feliz rumo ao infinito sem medos e diluindo pouco a pouco nossa personalidade no infinito fogo da vida!! Sat Nam. Namaste.

  2. Abandonar o apego, deixar padrões estereotipados e convencionais, nos levará a uma simplicidade que é nossa essência primeva.Só dessa forma, com o esvaziamento do ego,poderemos ser felizes, independente do que temos ou de onde estejamos.O importante é ser.

  3. Fiquei com vontade de reler esta obra. Sempre que deparo com os textos dos grandes mestres Zen, ocorre-me que nenhuma tradição, religião ou filosofia terá sido mais simples, clara e direta em apontar o significado da ação não-dual. Ninguém foi mais radical e eficaz na identificação e remoção do verdadeiro obstáculo à ação plena e completa. E ninguém foi mais incisivo na denuncia dos perigos de um excessivo verbalizar e intelectualizar. Ninguém apontou uma via mais económica, direta e compreensível para quem busca uma vida feliz e gratificante.

  4. says: Ana Paula Agra

    A analogia de Suzuki “prática Zen como uma fogueira” me lembrou a cena de um filme que gosto muito “Primavera, Verão, Outono, Inverno..e Primavera”. A cena em que o monge faz uma fogueira de si mesmo.

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