Dois anjos, enfastiados pela vida espiritual, falam da poesia que é a vida humana – em “Asas do Desejo” [TRECHO]

A lembrança desse desabafo do anjo Damiel (Bruno Ganz), no filme “Asas do Desejo“, de 1987 (Melhor Diretor no Festival de Cannes), querendo muito abandonar a vida “espiritual eterna” e viver como homem, traz uma bela visão sobre a vida de carne e osso na Terra, com suas limitações e trivialidades. Essa vida que quer ter Damiel, e que nós aqui temos todo dia, é uma vida onde não saber muita coisa traz intensidade e frescor, é uma vida onde ver e ser visto traz contatos e apreciações táteis, onde voar por tudo e todos para sempre é pior do que andar e se carregar pra lá e pra cá. O trecho do filme segue abaixo, com a parte do roteiro transcrito e o vídeo no YouTube (para ativar as legendas, é necessário clicar no ícone para ativá-las, na parte inferior do próprio vídeo).

É uma pintura visionária essa do diretor alemão Win Wenders, uma espécie de desejo saudável, pacífico e contemplativo de se ser humano. Possível, mas certamente não real em nosso dia-a-dia de hoje (nem de 87) – mas é uma grande inspiração. Imagino que Damiel não inveje a ignorância e o sofrimento que aparentemente não vê e não sente, pois está ocupado com seu próprio desejo, e as agonias e ilusões que corrompem essa possibilidade de viver plenamente no “agora! agora! agora!” pelo desejo permanente e turvo de ser mais, ser feliz ‘para sempre’ e ‘pela eternidade’. Isso que nos tira justamente a realidade da vida que Damiel vê – e que talvez, por isso, seja anjo.

Damiel: É ótimo viver espiritualmente, dia a dia testemunhar para a eternidade apenas o que há de espiritual nas mentes das pessoas. Mas às vezes sinto-me enfastiado pela minha existência espiritual. Em vez de pairar nas alturas para sempre eu preferiria sentir um peso sobre mim que interrompesse a eternidade e me prendesse à Terra. Gostaria de, a cada passo, a cada golpe de vento, poder dizer: “Agora, agora, agora!”, não mais ‘para sempre’ e ‘pela eternidade’. Sentar-me à mesa de cartas e ser cumprimentado, mesmo que por um aceno. Todas as vezes que participamos, era um fingimento. Lutando com alguém, fingimos que deslocamos o quadril. Fingimos que pescávamos. Fingimos que comíamos e bebíamos. Carneiro assado e vinho em tendas no deserto, era tudo fingimento. Não quero gerar um filho, plantar uma árvore, mas seria bom chegar em casa após um longo dia e alimentar o gato, como Philip Marlowe, ter febre e os dedos sujos da tinta do jornal, ficar entusiasmado não só pelas coisas do espírito mas também com uma refeição, pela curva de uma nuca ou um ouvido. Mentir descaradamente. Enquanto andamos, sentir os ossos se movendo. E supor, em vez de tudo saber. Poder dizer ‘ah’ e ‘oh’ e ‘ei’, em vez de ’sim’ e ‘amém’.

Cassiel: Sim, poder, ao menos uma vez, entusiasmar-me com o mal. Retirar os demônios das pessoas que passam por nós e enviá-los para bem longe. Ser selvagem.

Damiel: Ou pelo menos saber como é tirar seus sapatos sob a mesa e mexer os dedos dos pés, descalço. assim.

Cassiel: Ficar sozinho. Deixar as coisas acontecerem. Ser sério. Somente podemos ser selvagens na medida em que somos sérios. Não fazer nada além de observar. Reunir. Testemunhar. Preservar. Continuar espírito. Manter a distância. Manter a palavra.”

Abaixo, o trecho em vídeo (a partir do momento 2:12). Para ativar as legendas em português, clique no ícone de comentário na parte inferior do player.

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Compartilhado por Norma de Andrade Cardoso.

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4 Comments

  1. says: norma7

    Grande Post (a altura de um filme ‘tão’ metafísico).

    Nando,

    Para mim, a palavra-chave é: (auto) TRANSFORMAÇÃO mais do que o amor/desejo pela humana, que iniciou à própria transformação (Damiel)
    Para Damiel: À natureza humana que o permitiria vivenciar banais (para ele – fascinantes) experiências do cotidiano humano, em contrapartida a sua vida angelical, mas totalmente passiva. (despertar de uma identidade/para o saber, com o sentido de conhecer = ‘sentir’).

    Para os (alguns) humanos: A busca por uma ‘perfeição’ que atribuímos ao ‘mundo’ angelical/espiritual.

    Enfim, me parece que independente do objetivo a ser atingido, o catalisador que aumenta a reação é o AMOR, em qq dos mundos, por nós conhecidos.

    “Filme de Wim Wenders é um dos mais sublimes estudos da natureza humana dos últimos tempos” Rodrigo Carreiro

    Grata e Boa Sorte!

  2. says: norma7

    Quem já lida a algum tempo no mundo de hardware & software, já teve a sua experiência de “Full Disk”, logo no início da manhã. A minha veio em forma de um e-mail de um contato morando no exterior: Comentava uma notícia s/o Brasil:

    “Vamos ter de fazer amor.Já viu as chamadas dos portais de hoje? Temos bala só para uma hora de guerra…”
    “Exército brasileiro dispõe de munição para uma hora de guerra, diz general”

    Ao qual, respondi:
    Incorporando estilo Gandhi de ser em 5…4…3…
    e me despedi com um ditado árabe: “Se não queres morrer apunhalado, não penses no punhal…”

    A pouco o ‘mesmo’ mensageiro (não que faça alguma diferença, que é hetero e budista) passou-me um link bem diverso di 1º, que gostaria de compartilhar, por achar uma representação do amor tolerante (Paulo aos Coríntios:”Porém, o maior deles é o Amor e de “Paulo e Bebeto” de M.Nascimento:
    “Vida vida que amor brincadeira, vera
    Eles amaram de qualquer maneira, vera
    Qualquer maneira de amor vale a pena
    Qualquer maneira de amor vale amar”)

    Coizdloco! Eu desconfio que sei como Damiel se sentia e entendo a sua necessidade de experimentar esse ‘divino’ lado humano….

    Taiwan’s First Same-Sex Wedding Held At Buddhist Monastery (PHOTOS)

    http://www.huffingtonpost.com/2012/08/13/taiwan-same-sex-wedding-photos_n_1773086.html?utm_hp_ref=tw

    Fiquem Bem!

  3. Creio que o que Damiel sentiu foi a falta de mudanças (neles – seres espirituais) que marcam as vidas humanas, tornando-as fantásticas.A liberdade entre o bem e o mal, o poder de escolhas(livre arbítrio)que só nós humanos temos. Reclamamos disso tudo, mas é exatamente isso – o viver o hoje- “A insustentável leveza do ser” que nos torna seres especialíssimos, capazes de causar “Inveja” aos anjos. A dualidade amor e dor, essa louca ambivalência que nos marca o dia a dia é única de nossa espécie.Enfoque semelhante, embora sob outra ótica, foi o do anjo(Nicholas Cage)vivido no filme “A cidade dos Anjos”.Deve ser enfastiante o determinismo da perfeição.

  4. says: norma

    A visão de 1 cinéfilo:
    Qt:
    O protagonista de Wenders é Damiel, um anjo com sede de viver, com um olhar sempre positivo com relação a História da humanidade, a suas atitudes – Damiel tem o olhar de um ancião e o coração de um menino.

    Em “Cidade dos Anjos”, Seth é Damiel, mas de qualquer forma, é um anjo da morte, um anjo encarregado de levar para o “céu” as pessoas que morrem.

    O valor primordial para Damiel é o DESEJO. Não só o desejo sexual e romântico que sentia por Marion, mas o desejo pela vida, o desejo de existir como humano, o desejo pelo presente, contrapondo-se à eternidade.

    O valor primordial para Seth é a sensibilidade física e o livre-arbítrio. O que também não é muito aprofundado no filme – que passa a impressão de que Seth resolve mesmo ser gente quando fica sabendo que Maggie poderia se casar com o namoradinho ginecologista – ele se transforma em gente unicamente por ela. Não há grandes indícios de que ele sentia grande fome de viver, além do diálogo que tem com Maggie sobre a sensibilidade.

    Sirlene Cheriato é estudante de Arquitetura e Urbanismo da USP

    Unqt
    Boa Sorte!

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