Heidegger e “a mais perigosa condição do nosso tempo”: a obsessão com o pensamento superficial [LIVRO]

Para o filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976), um dos mais importantes do Século XX e autor de “Ser e Tempo” (1927), nada em nossa era secular e de tecnologia pode ser tão ruim quanto o pensamento “calculador” superficial, que persegue o simples “querer” e não dá espaço ao pensamento contemplativo. Existencialista e célebre por seu trabalho sobre a fenomenologia, Heidegger não é um filósofo simples de ser compreendido, e para entendermos melhor sua rica contribuição principalmente nesse tema da existência humana e da essência do “pensar”, invocamos abaixo o autor americano e mestre sufi Lex Hixon (1941–1995), um especialista em culturas espirituais e que estudou o legado de Heidegger. Autor de livros “Great Swan: Meetings with Ramakrishna” (1992) e “Atom from the Sun of Knowledge” (1993), Hixon também escreveu “O Retorno à Origem” (Coming Home: The Experience of Enlightenment in Sacred Traditions, 1978), um rico mergulho na tradições da experiência da iluminação, que passa por esse trecho sobre o pensamento contemplativo de Heidegger.

Ali (abaixo), Hixon costura de maneira básica algumas partes do discurso de Heidegger sobre a importância do pensamento profundo, ou contemplativo, e o intercala com afirmações de sua própria autoria sobre o que entendia de Heidegger. Em alguns trechos, traz ainda mais para o nosso tempo o que já era bastante contemporâneo: “A separação é um sintoma de desarmonia espiritual, ao qual os seres humanos sempre estiveram sujeitos, mas talvez o estejam mais intensamente nesta era secular e tecnológica. A cura dessa desarmonia entre o cálculo e a contemplação é o processo da Iluminação, que revela que a essência de todo pensamento é a contemplação. Este processo não é apenas para alguns santos ou iogues, mas para todo mundo“.

E esse pensamento profundo ou contemplativo não é um esforço filosófico, pelo contrário. É uma abertura, uma liberação. Inclui o “pensamento calculador”, mas é muito mais essencial e harmônico que aquele. Diz Heidegger: “O pensamento calculador não pode jamais aliviar genuinamente os problemas humanos, a não ser que se una ao pensamento profundo. O pensamento confinado à sua própria superfície começa a viver apenas para organizar, manipular, dominar. Esse pensamento obscurece a nossa harmonia intrínseca“. Mais à frente, compara: “O pensamento contemplativo, ao contrário, é uma perfeita liberação, que é, fundamentalmente, a liberação com relação ao querer”.

O livro “O Retorno à Origem” (1992), de Lex Hixon, não está mais disponível para venda na Editora Pensamento-Cultrix, mas há exemplares na Estante Virtual. O livro tem 242 páginas e tem prefácio de Ken Wilber.

★ Esse post é uma das recomendações de conteúdo vencedoras da promoção “Amit Goswami no Brasil“, de autoria de Leonardo Mendes, publicada originalmente no site Sophia Perennis. O Dharmalog agradece imensamente pelo trecho e pela indicação do livro.

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O Retorno à Origem” [TRECHO] Por Lex Hixon

“Heidegger descreve a obsessão com a superfície do pensar que nos distrai do pensamento profundo como a mais perigosa condição do nosso tempo. Heidegger chama esse pensamento superficial de pensamento calculador, não por depreciar sua capacidade de organizar o nosso mundo, e sim prevenindo-nos do seu poder de absorver completamente a nossa energia e atenção. O pensamento calculador não é meramente um eufemismo para a abordagem da ciência empírica, caracterizando também qualquer processo de pensamento que vise dominar e manipular situações. Na superfície, os pensamentos religioso e artístico também são calculadores. Contudo, nem mesmo o empobrecimento do pensamento quando confinado à sua própria superfície não consegue privar a consciência humana da sua natureza essencialmente contemplativa. Nas palavras de Heidegger: Podemos ficar pobres de pensamento ou mesmo desprovidos de pensamentos somente porque o homem, no âmago do seu ser, tem a capacidade de pensar… está destinado a pensar… é um ser pensante, ou seja, um ser que medita.

Segundo Heidegger, o pensamento profundo, em vez de organizar a energia, contempla o significado que reina em tudo o que é. O modo contemplativo cura, acalma, fortalece. Ele abre a pessoa ao objeto primordial de toda contemplação, que Heidegger denomina Existência, cuja radiância, ou significado, reina em todos os lugares. O pensamento profundo não exclui o pensamento superficial, mas permite que o superficial se torne transparente até sua essência suprema ou Existência. O botânico que está desenvolvendo novas variedades de trigo não precisa renunciar aos seus cálculos científicos quando desperta para o pensamento profundo e contempla o fulgor penetrante da Existência.

Embora o pensamento contemplativo não esteja além do alcance de qualquer pessoa, é preciso prática, como também é preciso prática para o domínio do pensamento calculador. Heidegger adverte: O pensamento meditativo, à semelhança do pensamento calculador, não ocorre sozinho. As vezes ele requer um esforço mais intenso. Ele exige mais prática. Ele precisa de um cuidado mais delicado do que qualquer outra habilidade genuína. Devemos desenvolver a arte de esperar, deixar fluir e confiar num processo espiritual natural e espontâneo. Heidegger afirma que o pensamento profundo deve ser capaz de aguardar o momento propício e esperar, como o fazendeiro, para ver se a semente vai germinar e amadurecer.

Enfatizando a simplicidade, a naturalidade e a acessibilidade imediata do pensamento profundo, Heidegger prossegue: O pensamento meditativo não precisa de modo algum ser extravagante. É suficiente demorarmo-nos no que está próximo e meditarmos no que está mais perto… aqui e agora, aqui neste pequeno pedaço de torrão natal. O trecho mais próximo de torrão natal é a consciência primordial, tal como ela permeia nossa atividade cotidiana. Na atual era tecnológica, não podemos nos tornar um planeta de aldeões rurais, mas a simplicidade natural e a harmonia da aldeia está disponível, onde quer que nos encontremos, através do pensamento contemplativo. A contemplação é nossa origem espiritual.

Quando separado do pensamento contemplativo, o pensamento calculador, com seu aparente aspecto prático, torna-se uma abstração. Ele desenvolve tecnologias que possuem poderes de manipulação e oferece uma sensação ilusória de tangibilidade, mas não consegue nutrir a humanidade. O pensamento calculador não pode jamais aliviar genuinamente os problemas humanos, a não ser que se una ao pensamento profundo. O pensamento confinado à sua própria superfície começa a viver apenas para organizar, manipular, dominar. Esse pensamento obscurece a nossa harmonia intrínseca. Contudo, o fato de podermos amiúde observar uma força tranqüila naqueles que conseguiram dominar algum aspecto do pensamento calculador — músicos, mecânicos, oleiros, matemáticos — indica que não existem duas dimensões separadas de pensamento, o contemplativo e o calculador, e sim um fluxo único de consciência. A separação é um sintoma de desarmonia espiritual, ao qual os seres humanos sempre estiveram sujeitos, mas talvez o estejam mais intensamente nesta era secular e tecnológica. A cura dessa desarmonia entre o cálculo e a contemplação é o processo da Iluminação, que revela que a essência de todo pensamento é a contemplação. Este processo não é apenas para alguns santos ou iogues, mas para todo mundo.

O pensamento profundo emerge organicamente do nosso pedaço de terra, do nosso jardim, de simples sementes. Ele nunca é abstrato, permanecendo intensamente prático por ser uma prática pessoal, uma forma de autoconfiança, como cultivar nossos próprios legumes e verduras. Entretanto, a natureza promissora dele é obscurecida pela própria simplicidade. Nas palavras de Heidegger: Talvez a resposta que estamos procurando esteja à mão; tão próxima que todos deixamos facilmente de vê-la. Pois o caminho para o que está próximo é sempre o mais longo e, portanto, o mais difícil para nós humanos. Este é o caminho do pensamento meditativo. Durante nossa peregrinação pela catedral, percebemos, enfim, que a Luz que ilumina os vitrais da contemplação é a nossa própria Luz. E isso que está próximo: a consciência primordial. Contudo, o processo de voltar para casa, para essa proximidade, é sutil e rigoroso.

Quando começamos a ler o Conversation on a Country Path About Thinking, um intercâmbio dramático entre três pensadores contemplativos, podemos achar difícil acompanhar sua linguagem. Heidegger cria novas palavras e novas maneiras de formular pensamentos, que podem parecer complicadas, mas que na verdade são tentativas destemidas de enxergar mais simples e diretamente. Esse diálogo resumido é uma ilustração da natureza do pensamento contemplativo, um passeio transformador por uma trilha campestre para a consciência primordial na essência do Existir.

Começando com um paradoxo fundamental do caminho místico, expresso pelo arqueiro zen que não olha para o alvo quando atira a flecha, um dos personagens de Heidegger faz uma observação a respeito da abordagem à contemplação: a natureza do pensamento só pode ser vista se não olharmos para o pensamento. Assim, precisamos nos afastar do nosso impulso de calcular, olhando para o céu ou para o outro lado das montanhas do nosso ser, para podermos nos tornar receptivos à profunda natureza do pensamento por baixo da sua função superficial de querer. E o segundo participante do diálogo responde: Em resposta à sua pergunta com relação ao que eu realmente desejava da nossa meditação a respeito da natureza do pensamento… eu quero não querer. Esse não-querer entra em ação quando deixamos de olhar para o alvo. Não podemos agarrar intencionalmente o não-querer; precisamos ser largados nele. O terceiro participante da conversa observa: Você quer um não-querer no sentido de uma renúncia do querer, de modo que por meio disso possamos… nos liberar para a essência procurada de um pensamento que não é um querer. O pensador contemplativo não se apodera da essência do pensamento, sendo, ao contrário, liberado para a essência do pensamento. Essa distinção não é apenas um jogo de palavras. Se esperamos entender um significado particular, extraindo energicamente a essência do objeto, permanecemos então no nível do pensamento calculador. Até mesmo o uso da sintaxe comum, de um verbo e seu complemento, como Eu conheço a essência do pensamento, representa um envolvimento sutil com o modo do controle intencional. O pensamento contemplativo, ao contrário, é uma perfeita liberação, que é, fundamentalmente, a liberação com relação ao querer. O contemplativo não mais afirma, Eu conheço a essência, porém pondera, não quer conhecer, e sim aguardar a essência num perpétuo não-saber. Importantes avanços culturais e científicos se desenvolveram a partir do querer ambicioso dos seres humanos para se apoderar de essências e, desse modo, controlar a energia, mas isso jamais nos liberará para a natureza da contemplação.

A conversa triangular prossegue, cada pensador respondendo ao outro como instrumentos numa composição musical.

— Se ao menos eu já possuísse a liberação adequada, eu poderia logo me livrar da tarefa de afastar-me do querer.

—Até onde conseguimos nos afastar do querer, estamos contribuindo para o despertar da liberação.

— Diga, em vez disso, para nos mantermos despertos para a liberação. Encarar nossos esforços pessoais como estando contribuindo para o despertar da liberação significa envolvermo-nos no cálculo sutil. A frase mantermo-nos despertos para a liberação expressa com maior precisão esse despertar do modo contemplativo. É preciso perceber que já possuímos a liberação adequada, porque a tarefa de nos afastarmos da vontade é interpenetrada pelo próprio querer. O querer nunca pode transcender a vontade. A única maneira de nos livrarmos do querer é vivenciar a verdade de que a perfeita liberação já existe. Assim continua a conversa:

— Não despertamos a libertação em nós mesmos por nós mesmos.

— Por conseguinte, a libertação é influenciada por algum outro lugar.

— Influenciada não, admitida. A libertação desperta quando nossa natureza é admitida para lidar com o que não é um querer.

Heidegger demonstra um cuidado constante de mudar a voz ativa para a passiva, o sentido intencional de influenciar a libertação para o sentido contemplativo de ser admitido. Porém essa predileção do pensamento profundo pelo modo passivo no reino da linguagem não significa passividade no reino da ação. Isso se torna claro através da continuação da conversa dos três amigos enquanto vagueiam sem rumo pela trilha campestre:

— Você fala em deixar como está e dá a impressão de querer se referir a uma espécie de passividade… Creio que compreendo que esta não ê uma maneira de debilmente permitir que as coisas vaguem ao léu.

— Talvez uma ação mais elevada do que a encontrada em todas as ações do mundo esteja oculta na liberação.

— E essa ação mais elevada ainda é a não-atividade.

Apesar de emergir diretamente da tradição filosófica ocidental, o pensamento profundo de Heidegger evoca a ação destituída de ego dos contemplativos zen e taoístas, cujo perfeito relaxamento no meio da ação admite o fluxo do Tao, ou o não-querer, deixa-o estar de um modo que permite espaço para a imobilidade no centro de uma intensa atividade. E isso que Heidegger denomina liberação.

Um dos três amigos pergunta, O que a liberação tem a ver com o pensamento?, e um outro responde, Nada, se concebermos o pensamento do modo tradicional como sendo uma representação. E esse o paradoxo com o qual começamos: a essência do pensamento não tem literalmente nada que ver com o pensamento calculador ou representacional, uma vez que pensar profundo não é fazer e sim ser. O pensamento calculador é representado, em geral reconstruído a partir dos bancos de memória da convenção, tanto pessoal como cultural. A contemplação, ou a essência do pensamento, ao contrário, é simplesmente presença. O pensamento representacional cataloga padrões úteis de pensamento e os apresenta repetidamente para organizar a energia. O pensamento não representacional, ou contemplativo, desperta o senso da nossa liberação intrínseca em relação a todos os padrões de organização, indispensáveis na superfície do pensar mas ausentes nas suas profundezas.

Poderemos nos perguntar, neste ponto, como reconhecer e praticar o pensamento contemplativo, uma vez que ele não pode ser retratado ou representado. O diálogo segue mesma direção.

— Nem com a melhor boa vontade consigo representar para mim essa natureza do pensar.

— Precisamente porque essa sua vontade, bem como o seu modo de pensar como representação, o impedem.

— Então, o que devo fazer neste mundo?

— Não devemos fazer nada e, sim, esperar.

Só se descobre o genuíno esperar meditativo através da aniquilação do querer que começa com o modo expresso no diálogo como o que devo fazer neste mundo? Esse modo pode ser de desespero ou indiferença, de renúncia ou êxtase, mas o avanço do pensamento intencional para o esperar meditativo requer uma autêntica revolução nos nossos padrões habituais de consciência. O pensamento profundo não envolve o fazer e nem tampouco ocorre no mundo, pois o mundo e o fazer são aspectos do pensamento calculador. A contemplação, por conseguinte, não fornece nenhuma resposta direta ao enigma o que devo fazer neste mundo? A contemplação não pode jamais ser um processo de satisfação da vontade.

O ambiente adequado para a prática do esperar meditativo é o que Heidegger denomina abertura e descreve por meio da seguinte metáfora visual: O campo de visão é algo aberto, mas sua abertura não ocorre porque olhamos. A abertura não é causada por nenhum ponto de vista específico, sendo, ao contrário, a ausência do perceber e do pensar através de uma única perspectiva. E a abertura, não causada por nenhum esforço de nossa parte, está sempre presente como consciência primordial. Sobrepomos a essa abertura vários mundos que são, nas palavras de Heidegger, apenas o lado voltado para nós de uma abertura que nos circunda, uma abertura repleta de exterioridades daquilo que, na nossa concepção, são objetos. Esses lados voltados para nós são os mundos que organizamos através do pensamento superficial. Para o mundo representacional, nosso mundo parece conter objetos, mas ele se revela à contemplação como a expansão aberta da consciência primordial. Os místicos afirmam amiúde, nas suas diversas linguagens, que não existem objetos, que tudo é um fluxo único, que aquilo que na verdade percebemos são as facetas ou contexturas de uma Realidade harmoniosa. Os personagens do drama de Heidegger começam agora a explorar essa Realidade, que se revela através da abertura.

— Ela me impressiona como um reino, um reino encantado no qual tudo o que dele faz parte retorna àquilo em que tem origem

— Rigorosamente falando, um reino onde tudo cabe não é um reino entre muitos, e sim o reino de todos os reinos.

— O encantamento desse reino pode muito bem ser… o seu reinar.

Pode-se considerar o nome reino como significando um espaço definível e, desse modo, tornando-se o assunto do pensamento calculador. A forma verbal reinar sugere a qualidade incalculável da abertura, seu encantamento. Esse contínuo apagar de calculações sutis à medida que surgem é o pensar contemplativo. Embora exista uma dimensão de contemplação, na qual mesmo esta atividade da mente é silenciada, o pensar significativo pode ser feito a respeito da contemplação através da contemplação em si. E este o processo do qual Heidegger se ocupa aqui: conduzir os outros para o núcleo do pensamento e supri-los de algum senso do desvelo e vigilância necessários para sustentar o pensamento contemplativo.

Heidegger usa as vozes desse diálogo para descrever sua experiência mística pessoal de ser levado do nosso mundo organizado para a essência radiante e ínvia do Ser. Talvez se possa avaliar melhor a força das suas palavras lendo-as em voz alta. Elas descrevem o reinar como a dádiva primordial oferecida aos seres humanos: o refúgio no sagrado coração do Ser. O reino reúne, como se nada estivesse acontecendo, cada qual com cada qual e cada qual com todos num permanecer, enquanto repousa em si mesmo. Reinar é um reunir e reabrigar para um repousar expandido num permanecer…

Aquilo que reina é uma expansão perdurável que, tudo reunindo, abre a si mesma, de modo que nela a abertura é detida e sustentada, deixando que tudo se mescle no seu próprio repousar. Cada uma dessas frases reproduz expressões das literaturas místicas tradicionais que descrevem experiências extáticas de se deixar objetos para trás, quando se é apanhado pelo Divino ou quando nos expandimos no Absoluto.

Carlos Castañeda, um antropólogo contemporâneo, foi conduzido por seu guia indígena Yáqui, o bruxo Don Juan, a esse reinar encantado. Sempre que ele era impelido ou induzido astuciosamente para fora dos limites do pensar calculador pelo seu mestre xamanista, Castañeda penetrava numa dimensão de consciência na qual os objetos desapareciam, ou apareciam grotescamente, refutando sua própria objetividade. Heidegger observa: As coisas que aparecem naquilo que reina não mais possuem a qualidade característica de objetos.

Isso não significa negar a existência coerente de objetos dentro dos nossos vários mundos organizados. Seria tolo nos recusarmos a considerar um relógio, por exemplo, como um instrumento por meio do qual podemos saber que horas são. Contudo, caso estivéssemos totalmente conscientes de sermos liberados naquilo que reina, um relógio não pareceria mais um objeto separado e, sim, um lado de abertura voltado para nós, útil e contudo totalmente transparente enquanto retorna e permanece na expansão do Ser.

Mas o que isto significa na verdade? Um dos três participantes compartilha uma frustração que nós mesmos podemos estar sentindo.

— Devo confessar que não consigo verdadeiramente representar na minha mente tudo o que você diz a respeito de reino, expansão e permanência, e sobre o retorno e o repouso.

— Provavelmente isso não pode, em absoluto, ser representado.

Se tentarmos criar, à medida que lemos, uma imagem clara daquilo que reina e seu relacionamento com o nosso mundo convencional e objetivo, estaremos nos afastando do pensamento contemplativo. É preciso força para ficar com o pensamento profundo, não a força do poder da vontade, mas a força de repousar, de abrir, de esperar. Temos a tendência de retornar à atividade calculadora, de começar mais uma vez a representar, vaga ou precisamente. A linguagem de Heidegger tenta desafiar esse anseio representacional, ao mesmo tempo que permanece envolvida com a designação autêntica. Sem, realmente, fazer uma descrição, ele consente que vários nomes da Existência sejam revelados de um modo não representacional. Assim ponderam os três participantes do diálogo:

— Qualquer descrição iria torná-la concreta.

— Não obstante, ela se deixa designar e, sendo designada, pode-se pensar a respeito dela.

— Somente se o pensamento não for mais representar.

Mas como vamos de fato nos envolver nesse processo de pensamento contemplativo? Devemos ficar perpetuamente esperando por uma resposta à simples questão de como começar? Heidegger responde afirmativamente sugerindo que o modo contemplativo é simplesmente um modo de esperar Talvez estejamos agora perto de sermos liberados na natureza do pensamento… ao esperarmos pela sua natureza… O esperar deixa o representar totalmente sozinho. Ele não possui na verdade nenhum objeto. A contemplação está esperando sem expectativas, esperando por esperar. Esse esperar é o acesso ao pensamento profundo, que não elimina o pensamento superficial — apenas o deixa sozinho. Não podemos afirmar, contudo, Estou esperando que o pensamento contemplativo comece, porque isso é o pensamento calculador esperar alguma coisa em vez do puro esperar. O pensamento profundo jamais começa, porque está sempre presente, pulsando no âmago de todo pensamento — esperando. Através desse esperar, ocorre uma sutil transformação da consciência comum e a distância torna-se proximidade, o esperar transforma-se em permanecer. Nas palavras de Heidegger, O esperar libera-se na abertura… na distância expansiva… em cuja proximidade ele encontra o permanecer no qual persiste.

Nesse ponto, os participantes do diálogo deparam inesperadamente com uma definição não-representacional da essência do pensamento. Essa definição é sugerida pela transformação da consciência, na qual a distância torna-se proximidade.

— Então, pensar seria vir para a proximidade da distância.

— Eis que deparamos com uma audaciosa definição da sua natureza.

— Eu apenas reuni aquilo que designamos, porém sem representar qualquer coisa para mim.

Assim como o artista não representacional reúne movimentos criativos que não têm nenhuma referência pictórica, nós também devemos expressar aquilo que rena com gestos puros de pensamento contemplativo que não têm nenhuma relação com o mundo organizado da vontade. Não nos propomos a criar nenhum sistema de afirmações, mas simplesmente manter nosso equilíbrio no pensamento profundo, que flui como um rio, em vez de se tornar uma estrutura abstrata. O pensamento representacional tenta naturalmente cristalizar o fluxo da consciência em estruturas fidedignas.

Para transcender esse anseio instintivo de representar, precisamos, nos termos de Heidegger, nos abrir como a abertura, um processo de florescimento ou de fusão não menos natural ao ser humano do que o processo de cristalização ou de organização.

Quando Heidegger se refere ao abrir da abertura, ele não o faz como um enigma zen-budista, ou koan, que gera calor para evaporar o pensamento. A atitude zen com relação ao pensamento envolve amiúde a desconfiança ou até mesmo o desdém. Heidegger, pelo contrário, se aprofunda mais por meio do pensamento, aceitando e até mesmo reverenciando o processo do pensar, permitindo que ele se aprimore gradualmente para se tornar um modo de revelação. Heidegger reflete assim a reverência pelo pensamento inerente à tradição filosófica grega. Para o Zen, a Iluminação se revela através de um rigoroso não designar, ao passo que o processo da designação reveladora leva à concepção do Bem de Platão. Heidegger, porém, não menos do que o Mestre Zen, reconhece o mistério desse processo contemplativo, seja ele entendido como designar ou não designar. Um dos três participantes comenta: Talvez esses nomes não sejam o resultado da designação. Eles se devem a uma designação na qual nome e nomeado ocorrem juntos. Se imaginarmos que somos nós que estamos dando nomes, ou designando objetos, estamos então envolvidos na atividade de querer ou de representar. Contudo, se reconhecermos que o nome e a coisa nomeada ocorrem juntos espontaneamente, então não estamos determinando que o processo de designar exista e, sim, liberando-nos para o nomear contemplativo, da maneira como ele já existe.

O nomear místico de Heidegger está mais próximo da prática tradicional de entoar o Nome Divino do que da função organizadora e controladora à qual o processo de nomear normalmente serve. Os místicos islâmicos, por exemplo, passam horas repetindo o Nome Divino de Alá, que possui o poder de despertar espontaneamente a contemplação como uma flor floresce a partir da semente. Heidegger libera esse mesmo poder sagrado no Nome, mas de um modo filosófico e não devocional. Através desse designar contemplativo — o abrir da abertura, aquilo que reina, a expansão ao Ser — aquele que entra em sintonia vivência um poder que atua através da intuição filosófica do mesmo modo como a palavra Alá atua por meio da devoção religiosa. Neste nível de contemplação, Heidegger deixa de ser um pensador individual com seus limites pessoais e se torna um foco para a transmissão da tradição mística ocidental, que ainda está viva no nosso século XX profano.

A semelhança do entoar devocional do Nome Divino, o entoar filosófico de Heidegger não é um processo voltado para um fim — ambos são modos do esperar eterno na Presença Divina ou simplesmente Presença. Nas palavras de Heidegger, Esperar é… a relação com aquilo que reina, na medida em que o esperar se libera para aquilo que reina, e ao fazê-lo deixa com que aquilo que reina reine puramente como tal. Esperar é o caminho e a meta: um esperar que nunca termina, um perpétuo inspirar. Qualquer outro relacionamento, como encontrar, iria estimular o senso de possuir, que torna concreto ou objetivo o que é encontrado. A Iluminação ou libertação naquilo que reina nunca pode ser encontrada, uma vez que jamais se perdeu. Como seres conscientes, já estamos simplesmente rodeados por aquilo que reina, ou consciência primordial. Permanecemos não iluminados na medida em que ainda não nos liberamos naquilo que reina, na medida em que não aprendemos a esperar em abertura, nem representando e nem querendo.

Por residir além do domínio da vontade, a libertação ou Iluminação, ainda que sempre constitua a essência do pensamento, é vivenciada como uma dádiva. Como Heidegger observa: A autêntica libertação deve basear-se naquilo que reina e dele deve ter recebido o impulso na sua direção. Este é o eco, no pensamento contemplativo de Heidegger, do sentido tradicional teísta da Graça Divina por meio da qual o devoto recebe de Deus um impulso na direção de Deus. No modo não-teísta, como o expressado pelo Zen Budismo, não existe nenhum Deus distribuindo a Graça; contudo, a Iluminação se manifesta da mesma maneira graciosa, livre de qualquer senso de esforço, merecimento ou realização pessoal. A Graça Divina e o despertar espontâneo descrevem o mesmo processo de receptividade e gratidão em duas linguagens diferentes, o processo que Heidegger denomina receber o impulso na direção daquilo que reina do próprio aquilo que reina. Quer falando a linguagem teísta ou não-teísta, os que vivenciaram a Iluminação comunicam uma sensação reconhecida de serem erguidos ou de abandono. Em ambos esses estados de experiência mística, a gratidão surge espontaneamente, como quando recebemos um presente de amor.

A dádiva da Iluminação é reconhecida como um retorno à nossa Origem Divina ou à nossa Verdadeira Natureza. Nas palavras de Heidegger Ele é liberado para ela no seu ser na medida em que ele originalmente pertence a ela… Esperar por alguma coisa tem como base o fato de pertencermos àquilo pelo que esperamos. A Iluminação já existe, porque somos próprios dela, nela estamos em casa, e portanto ela não precisa ser ativamente realizada. Entretanto, permanece o paradoxo de que muito esforço, angustiado ou jubiloso, é necessário para expandir a dimensão ativa, intencional e calculadora no perpétuo esperar da libertação ou Iluminação. Entretanto, esse esperar, que é ao mesmo tempo a prática da contemplação e sua meta, não é frustrante ou incompleto, porque nós já fazemos parte desse lugar — esperando. Essa sensação de pertencer ao modo contemplativo é a essência secreta de todo pensar. Segundo proclama o mestre zen, não existe a menor diferença entre a nossa mente comum e a mente de Buda. Não há nenhuma separação intrínseca entre a superfície do pensamento e suas profundezas.

Heidegger evoca a Iluminação totalmente em função da tradição ocidental. Seu entendimento é mais profundo do que o de muitos contemplativos, orientais ou ocidentais, porque ele prefigura a libertação ou a Iluminação como um perpétuo esperar, e não como a obtenção de um estado particular ou de uma meta definível. Como observa um dos participantes do diálogo já bem avançado na trilha campestre da contemplação: A libertação é, na verdade, o libertar-se de si mesmo da… representação e, portanto, uma renúncia do querer… exultando no esperar, através do qual nos tornamos mais esperançosos e mais vazios.

Vazio é um termo usado com freqüência no Budismo Mahayana para expressar a natureza da Realidade. O termo equivalente de Heidegger é abertura. O perpétuo esperar como vazio ou abertura, que é a Iluminação, gera paradoxalmente intensos sentimentos de gratidão. Para os adoradores do Deus pessoal, essa gratidão flui na direção do Divino. Para os que meditam no estado de sabedoria impessoal, a gratidão existe apenas por existir. Assim, os participantes desse diálogo finalmente vêm a reconhecer o pensamento contemplativo como agradecimento; nas palavras de Heidegger, esse agradecimento que não tem que agradecer alguma coisa mas que agradece apenas por lhe ser permitido agradecer. Esse agradecimento supremo, que foi revelado como a essência do pensamento, é a sensação todo-abrangente de proximidade, nas palavras de Heidegger, avançando para a proximidade… no sentido de seu introduzir na proximidade. Essa proximidade, que é a distância transmutada pela contemplação, é a sensação íntima de que nós somos a Luz que ilumina os vitrais de todos os contextos pessoais e culturais. A Luz ou Consciência que nós somos está essencialmente próxima. Ela é a proximidade.

No auge do diálogo de Heidegger, a natureza sagrada e misteriosa da proximidade é revelada como um princípio feminino de poder embriagador e transformador. Os participantes são liberados num estado lírico no qual reverentemente contemplam essa Sabedoria feminina no âmago do próprio pensar deles. A trilha campestre desapareceu no prado ínvio da consciência primordial, onde os três amigos fundem suas vozes para louvar o feminino pensar contemplativo.

— Ela aglutina sem costura ou orla ou linha…

— Ela se vizinha, porque trabalha somente com a proximidade…

— Se ela sempre trabalha, em vez de descansar…

— Enquanto vagueia nas profundezas da altura…

— Então, pode a admiração abrir o que estava trancado?…

— Como forma de esperar…

— Isso for liberado…

— E a natureza humana permanece adequada àquilo…

— Por isso somos chamados…”

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1 Comment

  1. says: norma7

    Tiziana Cocchieri , esteta

    (do folder da Fotógrafa Ma. Regina, que diz: – “em um mundo tão cheio de nada onde vivem, é que surgiu a ideia de fazer essa exposição.” – exposição s/a África, em Rondônia)

    (…)
    “por onde anda a beleza? Ela está dentro ou está fora? Está nos dois? No fora de onde e dentro de quem?”
    ++++
    Está em ti que se reconhece e pratica o belo como valor essencial. Está em mim que te aplaudo.
    Norma

    ++++++

    Nando,

    Começei (buzy) a responder pelo acima e cheguei ao Dharmalog em busca de mais beleza (ela tb demanda) e a encontrei:

    “O encantamento desse reino pode muito bem ser… o seu reinar.”

    Só um Mestre Sufi para me fazer ler sobre MH (mesmo porque, têm Existêncialistas mais compatíveis/chegados dentro do: “O homem se faz em sua própria existência” Pisc*). Claro que o assunto trata da importância dos fenômenos da consciência – portanto, matéria de interesse do Dharmalog.

    A ‘separação’ é um sintoma de desarmonia espiritual = o “ser separado” é um ser doente (patologia) a ser tratado e curado. E essa cura é apresentada como uma liberação ao alcance de todos que nela queiram investir = o pensamento contemplativo (a meditação).

    Até aí: (Y) = thumbs up!

    Enquanto lia, pensava em segundo plano: Que bonito! Que simples! E lembrava: Essa é uma tradução do filósofo, feita por um Iluminado. Não pode ser diferente (nadando raso, no meu pires – aumentava a coluna do positivo tentando zerar a do negativo).

    Pensei uma quantidade de ‘bobagens’ que vc não faz ideia. Todas as vezes que lia: ‘santos” – Pensava: Santo, não! Esse ‘povo’ tem mortes muito esquisitas… “Tout le monde” é comigo mesmo! E não li em diagonal. Li palavra por palavra juntando as ‘letrinhas’ até o término do texto com um Louvor à Sabedoria Feminino (Sophia).

    Não tinha nenhuma visão histórica favorável ao homem/autor/filósofo (suas angústias) e seu habitat (2 guerras – filiação ao partido Nazi, romance com uma aluna – demasiado!) e muito menos a recomendada ‘belevolência’, para quem dizia (na verdade: não tive antes, derrapei agora, espero corrigir o rumoà partir de hoje – :)* )

    “Como uma filosofia do tempo, o existencialismo exorta o homem a existir inteiramente “aqui” e “agora”, para aceitar sua intensa “realidade humana” do momento presente.”
    ou dividia e explicava o tempo (passado, presente e futuro) que me lembra os ‘3.000 Mundos’ Budista.

    Ou Vazio = Abertura. (que chega a essa conclusão. Que má vontade a minha!)

    Imagino o quão frustante é tentar criar um linguagem para o que existe, mas não se consegue codificar/representar. Tive compaixão do desgaste que esse ‘pensamento’ deve ter provocado.

    (Até mesmo filosofei quando dissem: “Qualquer descrição iria torná-la concreta”. – Eu (Nac) não creio. Apenas irei PENSAR que a ‘forma’ existe. (vejo com o cerébro), mas ela não cria corpo, só espaço (vazio).

    Peguei um “conselho” dele (+/- adaptado), olha aí:

    Portanto, no homem, o ser está relacionado ao tempo e está dado, – existe -, em três fenômenos, três “existenciais” que caracterizam como as coisas do passado, do presente e do futuro se manifestem para o homem e a unidade desses três fenômenos constitui a estrutura temporal que faz a existência inteligível, compreensível. São a afetividade, com que se liga ao passado pelo seu julgamento; a fala, com que se liga ao presente, e o entendimento, que é a inteligência com que lida com o seu futuro, com a angústia de sua predestinação à morte. Não podemos nos submeter a condicionamentos de nosso passado; não podemos permitir que sentimentos, memórias, ou hábitos se imponham sobre nosso presente e determinem seu conteúdo e qualidade. Nós também não podemos permitir que a ansiedade sobre os eventos futuros ocupem nosso presente, tirem sua espontaneidade e intensidade. Não podemos permitir que nosso “aqui e agora” seja liquidado.

    Enfim, exercitei vários aspectos e gostei muito to texto/tema.
    E, também, gostei de sentir que a ‘perene’ (eternidade)=metafísica, depois de um certo caminhar, em nada difere entre si,tornam-se única. (oriental e ocidental).

    Boa Sorte, _/\_

    P.S.: Gente, sempre que tenho receio de comentar algo, eu me lembro de um gesto do M.Quintana mostrando o seu corpo de cima a baixo e dizendo: “Eu moro aqui!”. Eu tb moro aki. E tenho de cuidar dessa ‘morada’ em termos externos, internos e metafísicos. Se alguém tiver algum esclarecimento… já vou agradecendo!Fiquem Bem!
    Norma

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