“Enquanto eu inventar Deus, ele não existe”: Clarice Lispector e o sentimento de que nunca tinha ouvido falar [CONTO]

“Eu ia andando pela Avenida Copacabana”, começa a escritora Clarice Lispector (1920-1977), nesse inspirado e surpreendente conto de 1971, parte do livro “Felicidade Clandestina“. Com sua conhecida inclinação para explorar as questões da alma no dia-a-dia, Clarice continua a descrição de sua experiência de transcendência num dia previsível do cotidiano carioca, revelando que, no meio daquilo tudo, “estava sendo uma coisa muito rara: livre“, e que sua liberdade se intensificou até o ponto onde teve então “um sentimento de que nunca ouvira falar“.

O conto segue abaixo na íntegra e é muito mais que uma narração, é uma declaração da descoberta do amor, de estar “amando de puro amor inocente“. E, pela visão de Clarice, como isso se relaciona com a experiência de Deus e com seu principal obstáculo, a existência de um Deus pré-concebido: “Enquanto eu inventar Deus, ele não existe“.

O conto é narrado no vídeo abaixo por Aracy Balabanian e é uma homenagem à escritora na semana em que completaria 91 anos (10 de dezembro).

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“PERDOANDO DEUS”
Por Clarice Lispector

“Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas.

Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.

Não era tour propriétaire, nada daquilo era meu, nem eu queria. Mas parece-me que me sentia satisfeita com o que via.

Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso “fosse mesmo” o que eu sentia – e não possivelmente um equívoco de sentimento – que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-Lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho.

O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.

E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva.

Então era assim?, eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-Lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu O visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não O via mais.

Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar – não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele – mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.

… mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria – e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte.

Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de “mundo” esse meu modo de ser um pouco de tudo.

Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que “Deus” é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.”

~ Clarice Lispector, conto “Perdoando Deus”, livro “Felicidade Clandestina” (1998)

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7 Comments

  1. says: Norma

    A Lispector sempre me surpreende.
    Esse conto estava esquecido no sótão… Foi prazeroso. Ela tece, lindamente, filigramas sobre julgamento de valores e a gradenza de coisas viventes ou já não mais. O seu Deus pessoal só passa a existir a partir da aceitação do seu “pacote” completo e do direito de existência dos outros “pacotes”. Bem, assim eu vejo: quanto mais me preservo… mais me exponho.
    Aí, lembrei-me:
    O acaso só favorece a mente preparada”

    — Louis Pasteur,
    Obrigada.

    1. Oi Norma,

      Swami Dayananda Saraswati fala algo parecido com essa frase do Pasteur que vc colocou. Talvez você goste de “O Valor dos Valores”, um belo livro dele, editado pelo Vidya Mandir. Ele diz: “Jnanam representa as diversas qualidades da mente na presença das quais, em medida relativa, o conhecimento do Ser pode ocorrer” (pg 21). Pode, não necessariamente vai, mas pode. Mas sem essas condições, não ocorre. E ele explica as condições. O “preparo”.

      Isso tudo na avenida de Copacabana! :)

  2. says: Norma

    Alô, Nando,

    É bom quando cometem (e somos o alvo)pequenas (ou grandes) gentilezas! Mais um “valor” agregado a tantos no Blog. Obrigada pela indicação do ‘O Valor dos Valores’ – o título já seduz à busca.
    Pois é, tudo pode acontecer em qualquer lugar…com ela aconteceu praticamente em nosso quintal coletivo e nem um pouco bucólico (rs).
    Com o Quintana. ao ser pergundando como se arranjaria num quarto de Hotel tão pequeno, em POA: Estou bem, pois moro aqui! – mostrando o seu corpo, no sentido da sua altura….
    Portanto, o revert que você me deu foi perfeito para explicar que “descobertas afortunadas” solicitam “preparo”, sem ele “não ocorrem”!. Já posso sorrir para mim mesma, ao pensar que Serendipidade (*) SÓ significava um tipo de criatividade (p/mim), onde aliava-se inteligência + senso de observação. Que ingênua!
    Obrigada por compartilhar seu conhecimento e hospitalidade.

    (Swami Dayananda Saraswati trouxe alento: “PODE”).
    Norma

    (*)Serendipidade, também conhecido como Serendipismo, Serendiptismo ou ainda Serendipitia, é um neologismo que se refere às descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso. – Wiki)

  3. says: Pedro Cabral Cavalcanti

    O problema não está na crença da existência ou não de Deus, pois se existimos é porque algo nos criou. O problema está na natureza do criador. O Universo é infinito, portanto, nada pode criar o Infinito, uma vez que nada pode ser maior que ele. Então só nos resta uma alternativa: O próprio Universo é o criador. Mas como o Universo seria o próprio criador? Sabemos que tudo no Universo é regido por uma linguagem matemática. Hoje, os cientistas já sabem queo universo todo é permeado por uma energia. Eles a chamam de Energia Escura, porque não a vêem. Ora, uma Energia infinita e regida por uma linguagem matemática é uma Energia Inteligente. Logo, o próprio Universo é um campo infinito de energia inteligente, mas não Consciente, pois não faz sentido a existência de um ser que não conhece sua própria dimensão, já que é infinito (pelo menos, segundo Huberto Rohden esta forma de consciência que conhecemos). Esta teoria se encaixa na filosofia taoista que diz: Tao (o Universo Imanifesto, Deus) gera Ki (uma energia secundária já pertencente ao universo relativo), pois se divide em Yang e Yin e gera tudo que existe. Para quem quer se aprofundar neste assunto escrevi o livro O MITO DO DEUS PAI publicado pela EDITORA BIBLIOTECA 24X7 e que pode ser adquirido diretamente no SITE DA EDITORA ou na LIVRARIA CULTURA. Ele discute o Universo Inteligente, senhor de sua própria criação. Entretanto, este não é um livro materialista, pois mostra que somos quantidades ínfimas de energia gerada pela vibração da Inteligência Infinita até adquirimos consciência através das sucessivas reencarnações em corpos materiais até evoluirmos para Seres Superiores (Espíritos de Luz).

    Infelizmente, este é um assunto sobre o qual as pessoas se recusam a falar e até a pensar. Elas têm medo, horror mesmo do desconhecido e isso leva ao comodismo de aceitar as explicações burlescas dos religiosos inclusive de que quando se sofre é por que o deus pai gosta muito de nós e está nos pondo a prova para ver nossa o grau de nossa fé. Esta é a desculpa que os religiosos têm par justificar a miséria humana. Como psicanalista posso assegurar que esta é uma atitude de transferência dos nossos pais biológicos que nos protege quando criança para um pai mais poderoso que nos protegerá quando adultos. Recebi um E-mail que trazia uma lenda cherokee da iniciação de um jovem ao estado adulto. Nela ele ficava de olhos vendados a noite toda a mercê de toda sorte de perigos, mas ao acordar e tirar a venda dos olhos viu que seu pai estava ao lado dele o tempo todo. Comparava a mensagem a Deus nos protegendo. Respondi então: Se Deus está ao nosso lado, por que então ele não protege seus “filhos” como o pai do índio e evita tanta desgraça, tanto assassinato no meio do mundo. Esta é a razão pela qual nossos antepassados tomaram os extraterrestres que assomaram em nosso céus como deus e sua comitiva de anjos que vieram trazer justiça à Terra, fazendo prosperar os bons e aniquilando os maus, imagem esta bem retratada nos textos bíblicos e que perdura até hoje, mas o Infinito não pode se reduzir ao finito (aspecto humano). Assemelho esta condição a de um personagem de nossa história (não sei se verdadeira) chamado Diogo Álvares que preso pelos índios inflamou um pouco de aguardente e apontou para o rio. Resultado: o mesmo que os nossos antepassados e ele acabou casando com a filha do cacique.

    Pedro Cabral Cavalcanti – pcabralcavalcanti@gmail.com

    1. O problema é que provavelmente a maioria das pessoas não deu a essa questão o tempo e a profundidade no pensar que você deu, Pedro. O que é “óbvio” para você não é para a maioria que vê Deus como uma questão de crença ou de aceitar (ou rejeitar) teorias que já existem.

      Eu ainda acrescentaria o aspecto da experiência interna disso, da percepção subjetiva, da “realização”, que seria algo coom a percepção da consciência universal por si mesma — e não somente a compreensão de uma entidade maior como conclusão filosófica lógica, que pode ser bastante estéril e ilusória. Acho que já passamos um pouco da fase do horror de questionar ou de associar a causa do sofrimento à vontade de uma entidade separada, mas ainda estamos no começo dessa era de interiorização e auto-conhecimento.

      Voltando à Clarice, parece q ela sentiu algo genuíno interiormente, livre das teorias de uma entidade separada e externa. Isso é bonito. Pode inspirar outras pessoas a andarem em suas ruas sem horrores e sem pais inivisíveis, não?

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