“Os Irmãos Karamazov” (1881), uma das principais obras do escritor russo Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881), se não a principal, e considerada por Sigmund Freud o maior romance já escrito, tem uma história rica em questões psicológicas da vida e das relações em família. No trecho abaixo, o personagem ancião Frei Zossima fala eloquentemente para o personagem Fyodor Pavlovitch (o pai dos três irmãos) sobre a necessidade da verdade e de ser verdadeiro, e das consequências trágicas de não dizer a verdade — tipo de discurso espiritual que o tornou o célebre “staret” (espécie de mestre da igreja ortodoxa russa) na história do livro.
O trecho abaixo faz parte do Livro 2, “Uma Reunião Intempestiva”, capítulo “Um Velho Palhaço” (livro em inglês na íntegra no Projeto Gutemberg).
“Sobretudo não minta si mesmo. Aquele que mente a si mesmo e escuta sua própria mentira vai ao ponto de não mais distinguir a verdade, nem em si, nem em torno de si; perde pois o respeito de si e dos outros. Não respeitando ninguém, deixa de amar; e para se ocupar, e para se distrair, na ausência de amor, entrega-se às paixões e aos gozos grosseiros; chega até a bestialidade em seus vícios, e tudo isso provém da mentira contínua a si mesmo e aos outros. Aquele que mente a si mesmo pode ser o primeiro a ofender-se. É por vezes bastante agradável ofender a si mesmo, não é verdade? Um indivíduo sabe que ninguém o ofendeu, mas que ele mesmo forjou uma ofensa e mente para embelezar, enegrecendo de propósito o quadro, que se ligou a uma palavra e fez dum montículo uma montanha — ele próprio o sabe, portanto é o primeiro a ofender-se, até o prazer, até experimentar uma grande satisfação, e por isso mesmo chega ao verdadeiro ódio…
Mas levante-se, sente-se, rogo-lhe; isto também é um gesto falso…
— Bem-aventurado! Deixai-me beijar-vos a mão.
— Fiódor Pávlovitch levantou-se e pousou os lábios sobre a mão descarnada do stáriets.
— Justamente, justamente, ofender-se a si mesmo causa prazer. O senhor disse-o tão bem, como jamais o ouvi dizer. Justamente, justamente, senti prazer em toda a minha vida com as ofensas, por um sentimento de estética, porque ser ofendido não somente causa prazer, mas por vezes é belo. Eis o que o senhor esqueceu, eminentestáriets: a beleza! Notá-lo-ei no meu caderninho! Quanto a mentir, não faço senão isso em toda a minha vida, a cada dia e a cada hora. Na verdade, sou mentira e o pai da mentira! Aliás, creio que não é o pai da mentira, embaraço-me nos textos, pois bem, o filho da mentira, e isto basta. Somente… meu anjo… pode-se por vezes florear a respeito de Diderot! Isto não faz mal, ao passo que certas palavras podem fazer mal. Eminente stáriets, a propósito, recordo- me de que, há três anos, tinha prometido a mim mesmo vir aqui informar- me e descobrir com insistência a verdade; peça somente a Piotr Alieksán- drovitch que não me interrompa. Eis de que se trata. É verdade, reverendo padre, o que se conta em alguma parte das Vidas dos Santos, a respeito dum santo taumaturgo, que sofreu o martírio pela fé e, depois de ter sido decapitado, ergueu do chão sua cabeça e, “beijando-a delicadamente”, a carregou muito tempo em seus braços? É verdade ou não, meus padres?
— Não, não é verdade — disse ostáriets.”
~ “Os Irmãos Karamazov“, Fiodor Dostoievsky
(*) Tradução: Natália Nunes e Oscar Mendes (Abril Cultural, 1970)
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