A revirgindade constante do mundo de Fernando Pessoa: “sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir, é lembrar”

Viver é ser outro. Nem sentir é possível se hoje se sente como ontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que ontem não é sentir – é lembrar hoje o que se sentiu ontem, ser hoje o cadáver vivo do que ontem foi a vida perdida.

 

Apagar tudo do quadro de um dia para o outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpétua da emoção – isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.

 

Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta cor rosa amarelecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silêncio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que foi será outra coisa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.

 

Altos montes da cidade! Grandes arquitecturas que as encostas íngremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edifícios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações — sois hoje, sois eu porque vos vejo, sois o que [não sereis] amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e há saudades desconhecidas na passagem.”

 

~ Bernardo Soares (semi-heterônimo de Fernando Pessoa), em “O Livro Do Desassossego”

“Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser”! É um Fernando Pessoa (1888-1935) zen, a gente pensa, não fosse o Fernando, o Pessoa e o zen apenas textos imaginários guardados na maleta de instrumentos para uso do cotidiano. Tudo, a todo momento, é este cometa inédito que fura a realidade com seu agora e agora e de novo agora. E agora. É uma revirgindade da emoção e de toda a percepção que se renova antes que pisquemos os olhos da próxima vez.

Esta é também a primeira noite do mundo.

PS1: Este é apenas um pequeno trecho, o Fragmento 94, de “O Livro do Desassossego” (1914), clássico de Pessoa. O livro inteiro pode ser lido online na publicação da Casa Fernando Pessoa.

PS: Quem ainda não conhece, vale a leitura do maravilhoso “Passagem das Horas“, do heterônimo Álvaro de Campos.

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5 Comments

  1. says: André Pombeiro

    Aliás, Fernando Pessoa não tem semi-heterónimos. São todos expressamente conhecidos como heterónimos do escritos. Obrigado pela publicação!

  2. says: Lucas

    Cada palavra desse texto é tão forte e cortante que, se ele tivesse só escrito “Esta madrugada é a primeira do mundo”, já teria sido extraordinário. Parabéns pela publicação.

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