“É isso que vejo na Crucificação”: Joseph Campbell explica o significado do símbolo cristão

Conhecido como um dos maiores estudiosos de Mitologia e Religião Comparada do Século XX, o americano Joseph Campbell (1904-1987), autor de “O Poder do Mito” e “A Jornada do Herói”, analisou vários símbolos e mitos cristãos, entre eles o da crucificação e ressurreição de Jesus Cristo, o profeta do Cristianismo, que usa a imagem dele em sua cruz como um dos seus símbolos máximos — como é relembrado neste período de Páscoa (e hoje também seria aniversário de Campbell, nascido em 26 de março de 1904). Campbell analisou esses símbolos mais de uma vez, usando várias referências históricas ricas e diversas, da Idade Média passando pelo folclore germânico e Carl Jung, e numa delas revela o que ele mesmo vê no simbolismo da Crucificação.  O trecho segue na íntegra mais abaixo (após a imagem da pintura de Giotto), do livro  “A Joseph Campbell Companion: Reflections on the Art of Living” e traduzido livremente por este blog.

Em um outro texto, do livro “Isto És Tu – Redimensionando A Metáfora Religiosa” (Landy), Joseph Campbell também analisa o símbolo da cruz e da crucificação explorando a questão de porque isso é mitologia e não história (ou mais mitologia do que história, se forem também história). Ele diz: “A resposta, portanto, à nossa pergunta do porquê a crucificação de Jesus ter tal importância para os cristãos envolve um complexo de associações essenciais que não são, de modo algum, históricas, mas sim mitológicas, pois, com efeito, jamais houve qualquer Jardim do Éden ou serpente capaz de falar, nem o “Primeiro Homem” solitário pré-pitecantropóide ou o sonho como “Mãe Eva” invocado a partir de sua costela” (pg.77). O livro pode ser encontrado em PDF na Internet ou em sebos como os da Estante Virtual.

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“ISTO ÉS TU”, capítulo Cruz e Crucificação [trecho] Joseph Campbell

“O que sempre é básico na Páscoa, ou ressurreição, é a crucificação. Se você quer ressurreição, você deve ter crucificação. Muitas interpretações da Crucificação falharam em enfatizar esse relacionamento e ao invés disso enfatizam a calamidade do evento. Se você enfatiza a calamidade, você busca alguém para culpar, e por isso as pessoas culparam os Judeus. Mas a crucificação não é uma calamidade se leva a uma nova vida. Através da crucificação de Cristo nós fomos libertados da concha, o que nos capacitou a nascer através da ressurreição. Isso não é uma calamidade. Por isso temos que ter um olhar renovado para este evento para que seu simbolismo seja percebido.

Se pensarmos na Crucificação apenas em termos históricos, perdemos a referência imediata do símbolo para nós. Jesus deixou seu corpo mortal na cruz, o signo da terra, para ir a seu Pai, com quem ele era um. De maneira parecida, nós vamos nos identificar com a vida eterna dentro de nós. O símbolo também nos fala da aceitação voluntária de Deus da cruz, quer dizer, de sua participação nas provaçÕes e tristezas da vida humana no mundo, de maneira que ele está aqui dentro de nos, não por causa de uma queda ou engano, mas por alegria e êxtase. Assim a cruz tem um sentido dual: um, nossa ida para o divino, a outra, da vinda do divino até nós. É uma verdadeira travessia. (nota da tradução: aqui há uma citação do verbo “atravessar”, ou “cruzar”, que usa a mesma raiza de “cruz”: cross, como cruz, e crossing, como cruzamento, no sentido de travessia).

Na tradição Cristã, a crucificação de Cristo é um grande problema: porque o salvador não poderia apenas ter vindo? Porque ele teve que ser crucificado?

Bem, várias explicações teológicas tem vindo até nós, mas eu acho que uma explicação adequada e apropriada pode ser encontrada na Epístola de Paulo aos Filipenses, onde ele escreve no capítulo 2 que Cristo não achava que a Divindade era algo para ser mantido – o que quer dizer que nem você deve manter – mas, ao invés disso, entregue, ele tomou a forma de um servo até mesmo na morte na cruz. Isso é uma afirmação feliz dos sofrimentos do mundo. A imitação de Cristo, então, é participar dos sofrimentos e alegrias do mundo, ainda que todo o tempo vendo através delas a radiância da presença divina. Isso é funcionar a partir do chakra do coração, onde os dois triângulos estão unidos.

É isso que vejo na Crucificação. De todas as explicações que tenho lido, é a única que faz aquilo que eu chamaria de um sentido respeitável. Os outros são todos preocupados com um deus vingativo que tem que ser apaziguado pelo sacrifício do seu filho. O que você faz com uma coisa dessas? É uma tradução do sacrifício numa imagem muito bruta.  A idéia de Deus sendo uma entidade que tem que ser acalmada é sórdida demais para ser concebida.”

Joseph Campbell em “A Joseph Campbell Companion: Reflections on the Art of Living

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Imagem: detalhe de “Cristo Cruficiado”, de Giotto (aprox. 1310).

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5 Comments

  1. says: Thiago M. Souza

    Caros colegas, gostaria de levantar uma questão sobre os problemas que um texto dessa natureza postado por um site ligado ao budismo pode criar. Acredito que um cristão veja o sacrifício do Cristo como o elemento libertador dos pecados num sentido muito concreto, ainda que seja místico. Talvez a apresentação de um elemento de fé tão central como mera mitologia possa soar reducionista e/ou ofensivo mesmo para não fundamentalistas e portanto estimular uma animosidade contra o budismo de forma geral fechando, mais do que abrindo portas, para o dialogo inter-religioso. Não que eu considere o texto ofensivo em si – como todo objeto vazio. Vazio de significado fundamental -, mas será que não deveria haver um alerta no início do texto sobre em qual momento é oportuno usar essa interpretação?

    Respeitosamente
    Thiago

    1. Caro Tiago,

      Entendo sua preocupação, e te agradeço a mensagem e o respeito. Peço que confiemos um pouco mais no ser humano, na liberdade e na fraternidade das pessoas.

      Antes de tudo, porém, devo esclarecer que esse site não tem nenhuma ligação oficial com o Budismo nem o representa, portanto, não há porque ninguém associar nada a ele assim aqui, nem ao Cristianismo, nem a ser um interlocutor de qualquer diálogo inter-religioso, embora diálogos aconteçam entre todas as informações e conhecimentos sempre, dentro de nós (e aqui também). Ainda que publique aqui várias fontes de sabedoria budista, Joseph Campbell não é uma delas, é sim uma referência de estudo e pesquisa de Mitologia e Religião Comparada, como é de conhecimento público. Porque o tema do blog, novamente, não é o Budismo, é o auto-conhecimento.

      Sobre o mérito da questão, é cada vez mais vital sabermos lidar com informações de fontes diferentes e de visões diversas, e este blog é inevitavelmente um estimulador natural disso. Quem não quer ver outros lados, infelizmente não vai gostar muito daqui, porque se faz muito isso aqui. A própria Internet faz muito isso por si mesma: conecta e transita informações e conhecimentos de todos os cantos a todo momento. Auto-conhecimento precisa muito disso, de explorar, questionar, pesquisar, descobrir, perguntar, etc: ir por onde podemos enxergar mais e melhor.

      Mas quero deixar claro que o site está aberto a todos, inclusive aqueles que se consideram fundamentalistas, desde que haja respeito e diálogo. Entendo que o respeito e a seriedade com que lidamos com os conteúdos aqui deveria ser característica suficiente para que todos possam receber o que se publica sem animosidade. E um pouco de animosidade também faz parte, porque todo mundo já refletiu minimamente sobre muitos desses assuntos e se identifica com o que acredita. Mas é preciso que encontramos um caminho no meio disso.

      E ainda que muitos textos possam ser vistos como afronta ou desafio, temos que considerar que é através de desafios que muito se cresce, se amplia e se liberta. Eu mesmo me “afronto” com frequência aqui, e esse texto também me ajudou a esclarecer algumas coisas. Se esse não foi o caso para alguém neste texto, faz parte, desconsidere, quem sabe o próxima tenha algo melhor.

      Sem me estender mais, gostaria apenas de pedir cuidado com algumas expressões, como “estimular a animosidade”, “fechando”, “reducionista”, etc. Sei que foi com boa intenção, mas elas podem induzir o que nunca foi nem vai ser intenção do texto ou do site. Isso tem que estar claríssimo, ainda que eu também possa me comportar com uma postura enérgica e desafiadora em algumas ocasiões. Te convido a imaginar, Tiago e quem mais tiver lendo, que a mitologia pode não só ser uma visão diferente, longínqua, de uma categoria isolada de conhecimento, mas uma visão recente que pode se somar à história, que pode se somar e contribuir à visão religiosa, que pode ajudar a revelar dimensões adicionais de um profeta e de um ensinamento que tinha riqueza na sua missão. Não para desmenti-lo, mas para reafirmá-lo, talvez até como mais contemporâneo e eterno do que se faz idéia. E assim podemos compreender e realizar mais, e quem sabe até se aproximar mais disso tudo. Porque se tem verdade, estamos todos indo para lá, não estamos? O caminho, a verdade e a vida.

      Um abraço fraterno,
      Nando

  2. says: Manuela Garcia

    Como Espírita e mediun de algumas faculdades, Jesus reuniu durante 1200 antes de vir à terra (ler génese de Allan Kardec )todas as suas forças espirituais para poder readaptar o seu corpo espiritual às condições tacanhas deste planeta. O cruz era curriqueiro elemento (estacas )onde se penduravam todos e qualquer condenado da época, Subiu imediatamente em corpo fluidico ainda o corpo na cruz! Ele só quis ser usado como Governador da terra como prova de todo amor por nós. A cruz ou outro modo qualquer de morte é só passagem da reencarnação. E já estive fora do corpo várias vezes e Jesus é explendor luz belo; nada de cruz.

  3. says: Mara Lopes

    Maravilhoso. Sou católica da Renovação católica carismática e finalmente alguém de fora entendeu parte do que ela significa para nós.

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