E, então, por que tremer tanto em perigos e dúvidas? Lucrécio descreve a natureza das coisas (em 50 AC)

Titus Lucretius Carus, ou Tito Lucrécio Caro, ou simplesmente Lucrécio (96-53 aC), foi um filósofo latino (provavelmente romano) do século I AC que tentou desvendar e apresentar o que acreditava ser a chave para conhecer o universo e alcançar a felicidade na vida. Fundamentado nas filosofias de Epicuro e Demócrito, ele escreveu sua grande obra em seis volumes De Rerum Natura, traduzida para o português como “Sobre a Natureza das Coisas”, ou apenas “Da Natureza“, pelo filósofo português Agostinho da Silva (1906-1994), autor da tradução do livro e do trecho abaixo. O medo da morte, a ignorância de si mesmo, as reações perante o desconhecido e as fugas humanas fazem parte desse trecho, que está no compêndio “Epicuro Lucrécio Cícero Sêneca Marco Aurélio“, coleção “Os Pensadores” (1985).

Talvez não pareça claro neste trecho, mas Lucrécio tinha uma abordagem praticamente materialista do mundo e da vida, negando a existência da alma essencial (como entidade que sobrevive à morte), concebendo o universo como uma sopa de átomos produzidas ao acaso e que os fenômenos terrestres são eminentemente causados pela natureza e somente por ela. Ainda assim, apesar do ateísmo e hedonismo, e de ser considerado hoje um tanto superficial (apesar de ter investigado seriamente a abordagem atomista e ter combatido religiões e superstições), Lucrécio buscava um viver mais nobre e de coração, e o trecho abaixo soa (pra mim pelo menos) como uma pensamento filosófico prático, mais do que pessimista, sobre as inevitabilidades da vida (e o que é inutilmente evitado).

Segue o trecho:

DA NATUREZA

Se os homens pudessem, assim como parecem sentir no fundo do espírito uma carga que os fatiga com seu peso, conhecer quais são as causas que a geram e por que razão tão grande fardo de desgraça se lhes mantém no peito, não levariam a vida que levam agora, na maior parte, sem saber o que querem e procurando sempre mudar de lugar como se pudessem, assim, ver-se livres da carga. Muitas vezes, aquele que sai de grandes paços, porque se aborreceu de estar em casa, a eles volta de súbito, por nada haver fora que sinta ser melhor; corre precipitado para a sua casa de campo, incitando os garranos, como se fosse levar socorro a um incêndio em casa; mas, logo que passa o limiar, boceja, ou, pesado, se deita a dormir e procura o esquecimento; ou então, a toda pressa, dirige-se à cidade para a tornar a ver.

 

Deste modo, cada um foge a si próprio, mas como se vê não lhe é possível escapar-se, e fica preso à força e odeia, porque, estando doente, não compreende a causa da enfermidade. Mas, se bem a vissem, todos, abandonando as outras coisas, procurariam conhecer primeiro a natureza, porque a origem de tudo vem da eternidade, não de uma só hora: e é na eternidade que os mortais terão de passar todo o tempo que lhes resta após a morte.

 

E, então, por que tremer tanto em perigos e dúvidas? Que enorme e maléfico desejo de viver nos subjuga? Há para os mortais um fim de vida certo e próximo; ninguém pode evitar aparecer diante da morte. Depois, sempre estamos e insistimos no mesmo, e não é por vivermos que nos surge qualquer novo prazer. Só enquanto está longe o que desejamos nos parece exceder o resto; depois, logo que o alcançamos, desejamos outra coisa; a mesma sede de vida nos mantém sempre anelantes.

 

Também ficamos em dúvida quanto à sorte que nos trará o futuro, que nos dará o acaso ou quanto ao fim que se aproxima. Não é por prolongarmos a vida que diminuímos num mínimo que seja o tempo da morte; não podemos tirar nada que nos faça escapar do aniquilamento. Podes, portanto, durante o tempo da vida, enterrar quantas gerações queiras; nem por isso a morte ficará menos eterna: não existe menos aquele que hoje vê o termo da vida do que outro que já morreu há muitos meses, há muitos anos.

Sobre esse trecho, o livro traz a seguinte nota de rodapé:

No fim do Livro, Lucrécio quer afirmar com toda clareza que o medo da morte ou o desagrado que se possa ter da vida não são mais do que o resultado da ignorância; o conhecimento da natureza das coisas, o poder de contemplar tudo quanto existe com uma segura ciência, o  dominar, por lhe ter penetrado no mais íntimo, a lei do Universo, garantem a paz na existência, garantem uma vida animada pela idéia de beleza da hora presente e não esmagada, torturada pelo terror da morte. É por este ponto que se tem feito uma aproximação entre a filosofia de Epicuro e de Espinosa; mas escusado será dizer que o pensador de Amsterdam, apesar de determinista, não caiu em nenhuma das ingenuidades filosóficas de Epicuro; e é bem provável que o sentido último da sua atitude quanto à ciência, vida e morte, seja muito diferente do que davam à sua os adeptos do epicurismo.

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Imagem: manuscrito de De Rerum Natura, de Girolamo di Matteo de Tauris, em 1483.

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11 Comments

  1. says: norma7

    (…) nem por isso a morte ficará menos eterna: não existe menos aquele que hoje vê o termo da vida do que outro que já morreu há muitos meses, há muitos anos.

    Ele afirma que o medo da morte criou o mito da imortalidade da alma. (STOP! e eu obedeci. parei aqui!)

    (Segundo a Wiki: A Teosofia sustenta a tese da alma morredoura, mas defende que o espírito, princípio que anima a alma, é o Ser que realmente sobrevive à morte).

    Num mui velho apostilão de Filosofia, escrevi em sua página/verbete, com ‘pilot vermelha’: Cientista ? Por isso, marcado logo abaixo: “mutações biológicas, e a seleção do mais forte para sobrevivência”.
    Vou procurar/relembrar/descobrir e encontro:
    “Quando perguntaram a Darwin se ele havia lido Lucrécio, ele disse ao incrédulo perguntador que não. Mas estava tudo ali em Lucrécio, quer Darwin o tenha lido, ou não.” Uauuu!

    ++++

    Tá certo que naqueles tempos pensadores, cientistas, poetas, legisladores eram todos denominados filósofos, mas o Latim não era a língua mais propicia para se ler um ‘paper’ de um atomista, p. exemplo e se sair filosofando copiosamente… pelas ‘Thermae’ caldarium ou frigidarium, isso é coisa para gregos :)

    Então, todo mérito e honra para Lucrécio (Ingeniosus homo es. [Marcial, Epigrammata 1.73.4] És um homem inventivo.) e grata pelo Post. Norma

  2. says: norma7

    Ué! Cadê o comentário que fiz ontem?

    +++++++

    Indiquei o Post e o que havia comentado para um amigo e fui informada que não existia…

    ??? Norma

    1. Nunca saiu dali, Norma. Sequer foi pra moderação, entrou direto (como todos que já tiveram comentários anteriores).

      Por falar nele, seu cruzamento de Darwin e Lucrécio interessa muito. Se souber de alguma fonte que já tenha discorrido a respeito, eu agradeceria.

      gratias agimus tibi,
      Nando

    1. says: norma7

      Sra. Célia Santos,

      Só hoje voltei a visualizar a área dos comentários.

      Mas recebi ‘inbox’ s/participação que, por eu ter sido a única, até àquele momento, a ter ‘escolhido’ dizer algo a respeito do Post, creio referir-se a mim. Observo que a senhora aceita, de bom grado, as observações oriundas do Administrador/Proprietário do Blog. Então, esclareço que o pedido que me foi formulado acima, por maiores detalhes, já foi atendido, via e-mails. Isso se deu, porque a onde a senhora vê EGO, é visto por alguns como “Espírito de Procura”, Amor ao Conhecimento e Disseminação de Informações (FÉ – PRÁTICA – ESTUDO/ERUDIÇÃO). Afinal, o Dharmalog trata-se de uma página voltada ao autoconhecimento e ‘descobertas’ e não uma “fan page” qualquer, onde todos deveriam participar, ‘contribuindo ou retirando’, conforme fosse o caso e necessidade, pelo menos em princípio. (Assim pensava até hoje).

      Já passou muito a casa dos 7 bilhões de ‘viventes’ no mundo e dificilmente as ‘arestas de nossos diamantes’ voltarão a se atritar e a polir, pois por natureza, não semeio ‘Dentes de Dragão’.

      Agradeço o carinho recebido de muitos, nesses anos de convivência.
      Boa sorte, Norma

  3. Muito bom, muito bom mesmo!
    O sofrimento não é nada menos do que resultado de toda aquela frustração formada pelos valores que aprendemos desde pequenos. Aprendemos que a morte é ruim e triste, que é a única certeza da vida, mas não aprendemos a refletir sobre isso. Encaramos a vida como se fosse eterna… Como se fossemos invencíveis, sempre na certeza do amanhã.
    Hedonismo é a loucura mais racional que se pode ter!
    Obrigado pelo post!

    1. says: Paulo Faria

      Consideração de um mestre budista sobre a morte; “a quem interessar possa”. Não desejo criar mais entropia no blog do GRANDE Nando, um blog de preciosidades e não de discussões desnecessárias.Gosto MUITO dos comentários da NORMA entre os tantos outros que oferecem os seus ensinamentos.

      VIDA E MORTE

      “…Não ignore a impermanência. O que quer que pareça ser prioritário em sua vida é realmente bastante temporário. Vem e vai. Nada é confiável.
      Nascemos sós e nus. Conforme nossa vida se desenrola, passamos por todos os comportamentos possíveis: necessitar, possuir, perder, sofrer, chorar, tentar…mas depois morremos, e morremos sós. Não fará a menor diferença se formos ricos ou pobres, conhecidos ou desconhecidos. A morte é o grande nivelador. Num cemitério, todos os cadáveres são iguais.
      Nossos relacionamentos com os outros são como o encontro casual de dois estranhos num estacionamento. Olham um para o outro e sorriem. E isso é tudo o que acontece entre eles.
      Vão embora e nunca mais se vêem. Assim é a vida – apenas um momento, um encontro uma passagem, e depois acaba.
      Se você compreender isso, não há tempo para brigas. Não há tempo para discussões. Não há tempo para mágoas mútuas. Quer pense nisso em termos de humanidade, nações, comunidades ou indivíduos, não sobra tempo para mais nada a não ser apreciar verdadeiramente a breve interação que temos uns com os outros.
      Nossas prioridades mundanas podem ser irônicas. Colocamos em primeiro lugar aquilo que julgamos ser o que mais desejamos; depois descobrimos que o nosso desejar é insaciável. Pagar a casa, escrever um livro, fazer o negócio ser bem-sucedido, preparar a aposentadoria, fazer longas viagens. – coisas que estão temporariamente no topo de nossa lista de prioridades, consomem nosso tempo e energia completamente. E, então, no fim da vida, olhamos para trás e nos perguntamos o que todas essas coisas significavam.
      É como alguém que viaja num país estrangeiro e paga sua viagem na moeda daquele país. Quando chega a fronteira, se surpreende ao tomar conhecimento que a moeda do país não pode ser trocada ou levada. Da mesma forma, nossas posses e aquisições mundanas não podem ser levadas através do portal da morte. Se confiarmos nelas, nos sentiremos, repentinamente, empobrecidos e roubados. A única moeda que tem qualquer valor quando viajemos pelo limiar da morte é nossa realização espiritual.
      É melhor se contentar e apreciar aquilo que temos num sentido mundano. O tempo é muito precioso. Não espere até estar morrendo para compreender sua natureza espiritual. Se fizer isto agora, vai descobrir recursos de bondade e compaixão que você não sabia possuir. É a partir desta mente de compaixão e sabedoria intrínseca que você pode beneficiar os outros.
      O progresso espiritual começa quando resolvemos não mais prejudicar os outros. Portanto, por favor, seja cuidadoso. Se você se colocar no lugar do outro, vai perceber o quanto é destrutivo ferir ou matar, ainda que seja um inseto. A vida é vida, e todos os seres querem viver. Se você cuida dos outros com esta perspectiva, fechará a porta a seu próprio sofrimento.
      A mente é como um microscópio. Amplia tudo. Se você se critica o tempo todo – “Sou tão pobre, não sou suficientemente alto, meu nariz é grande demais” – se concentra a atenção em todas as suas inadequações e misérias, elas só piorarão até que, em desespero, você fique prestes a desistir de tudo.
      Em vez de dizer: “Sinto-me detestável. O que devo fazer?” pense no sofrimento dos outros e gere compaixão. É muito importante, realmente, ver o sofrimento, prestar atençao no atormentado caixa do banco, no pálido e cansado velho arrastando os pés pela rua, na criança que chora infeliz. Veja a profundidade do sofrimento. Os outros estão doentes, estão imersos na guerra e na fome, estão morrendo.
      Compaixão é o desejo fervoroso que todos os seres, sem exceção, seu pior inimigo assim como seu amigo, encontrem a liberação do sofrimento. Para desenvolver uma compaixão genuína que inclua a todos, primeiro exercite a compaixão com aqueles que lhe são próximos; depois estenda-a aos estranhos e por fim a todos os seres por todo o espaço.
      Depois, direcione o seu desejo para a felicidade deles. Como a felicidade que os outros possam ter alcançado em função de suas virtudes passadas, possa ela nunca diminuir ou ser perdida, e que possa aumentar sempre, até que alcancem a felicidade infinita e imutável. Este desejo pela felicidade dos outros é o significado verdadeiro de amor. Regozijar-se com qualquer extensão de felicidade que os outros possam ter, traz uma alegria ilimitada à nossa própria existência.
      Reconheça sempre a qualidade onírica da vida e reduza o apego e aversão. Pratique o bom coração em relação a todos os seres. Seja amoroso(a) e compassivo(a), não importa o que os outros façam.O que fazem não importará muito quando visto por você como um sonho. Esse é o ponto essencial. Essa é a verdadeira espiritualidade.
      Se você usar manto, raspar a cabeça, rezar de joelhos todos os dias, e ainda assim se tornar mais raivoso, orgulhoso, sempre certo e difícil de lidar, não estará praticando a espiritualidade. Você precisa praticar a essência, que é a compaixão e o amor altruísta, e a partir daí tentar ajudar os outros da melhor maneira que puder. Use todos os seus recursos de corpo, fala e mente. Esse é o método. Seja você cristão, hinduísta, judeu ou budista, a compaixão e o amor são os mesmos.
      A vitória sobre as falhas e delusões leva à vitória sobre a morte. Meu desejo para cada um de vocês é que alcancem as qualidades de compaixão e sabedoria e o supremo e imortal estado de iluminação…”.

      CONCLUSÃO: Livro “Vida e Morte no Budismo Tibetano” – Chagdud Tulku Rinpoche

  4. says: Maria

    E o que ele trouxe de novo: Lucrécio exalta Epicuro, rememora no livro II, o conceito de clinamen, que significa que os átomos se desviam aleatoriamente. Assim como universo, o homemm é constituido de átomos e sendo assim o desvio,a liberdade faz parte da sua natureza; o que foge do sentido determinista atribuido à ele. Outro ponto importante é que a filosofia epicurista não separava ciência da ética, da vida prática.
    Giles Deleuze na contemporaneidade explora muito bem o conceito.

  5. says: carlos a.c. liberal

    lucrécius era um aprendiz da fisica e como divagador poético não podia achar mais razoável que ter uma explicação simples para a vida e para a morte”.o eterno e o eterno pode ser lindo;mas não é assim tão simples”#fico como termo o que não é explicável é que é verdadeiro”

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