“A gente se acostuma, mas não devia”: à janela fechada, a tomar café correndo, a não viver o dia, por Marina Colassanti

A gente se acostuma a coisas demais na vida, e algumas dessas coisas acabam subtraindo a humanidade dos preciosos momentos que temos. A escritora e jornalista Marina Colassanti (“Rota de Colisão”, “E Por Falar em Amor”, “Intimidade Pública”) listou vários desses hábitos no texto “Eu sei, mas não devia“, hábitos que vão lentamente se acumulando com o tempo, como poeira, e com algumas decisões menores e aparentemente inofensivas acabam fazendo a gente se acostumar “a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora“, a “tomar o café correndo porque está atrasado“, “à luz artificial de ligeiro tremor“, e várias outras coisas. O texto segue abaixo acompanhado de duas belas leituras recentes dele, uma de Antonio Abujamra e outra de Juca de Oliveira.

Nem todas as coisas que a Marina Colassanti lista são assim passíveis de mudança, ou de imediata mudança. Algumas são simplesmente consequências das coisas como são, no estágio em que estão, ou de outras decisões que tomamos que tem suas implicações. Se quisermos ler o jornal, teremos as guerras lá e os números de fatalidades lá. Se quisermos morar numa cidade grande, teremos a poluição lá. Se quisermos trabalhar num certo lugar longe, teremos que dormir no metrô, ou ler livros no ônibus, etc. Tudo isso é possível de ser mudado — o jornal, a cidade, o lugar onde se trabalha — mas há graus de dificuldade diferentes para cada um de nós. O primeiro passo é a tomada de consciência, para sabermos quantas decisões levam a quantas circunstâncias que acabamos nos acostumando, e até onde estamos dispostos e temos por onde mudá-las.

Segue o texto, que faz parte do livro “Eu sei, mas não devia” (Editora Rocco).

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EU SEI, MAS NÃO DEVIA” [trecho] Por Marina Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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A declamação de Antonio Abujamra, no programa Provocações:

 

A declamação de Juca de Oliveira, no programa Devaneio da Band News:

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Compartilhado por Meire Guimarães.
Foto de kpalmtrees (licença de uso BY-ND Creative Commons)

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20 Comments

  1. says: Patrícia

    Lí esse texto acho que eu tinha uns 20 anos ou menos. Tocou-me profundamente. Vejo que passados 17 anos, infelizmente, ele faz ainda mais sentido.

  2. says: CAMILLA

    “A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.”
    tbm não sorrimos de volta qdo sorriem p nós, e por estar tão desligados do mundo e de nós msm ficamos cegos, surdos, e mudos… tanto sofrimento a nossa volta e fingimos não ver, como se ao fingir não ver.. entao aquela dor horrenda passaria a não existir.. mas ela continua ali, a minha dor e a do outro.

  3. says: Fabiano

    Boa tarde Nando,

    Estou acompanhando o Dharmalog há pouco tempo e um dos motivos é a procura de aprendizado para lidar com tantos problemas dos outros ou do mundo e um pouco que li do budismo entendi que devemos mudar a nós mesmos não o mundo porque devemos dar o exemplo e tem muitas coisas que não temos realmente como mudar. Por exemplo se meu irmão acha que é mais importante juntar dinheiro que cuidar das pessoas a sua volta não adianta eu viver angustiado por ele.

    Lendo este texto me dá impressão contrária, instigando o leitor para uma contrariedade tamanha(quase culpa) devido ao nosso mundo caótico e cheio de injustiças, considerando que muitas coisas não estão exatamente ao nosso alcance, como é para o budismo a postura para todos esses problemas?

    Parabéns pelo blog.

    1. says: crítico

      Olá Fabiano, se não se importa, eu gostaria de pedir licença para sincronizar a sua questão a uma resposta, de um tanto quanto, búdica a um ponto de vista mais sutil.
      Primeiramente, gosta que lesse este texto. Por Reverenda Yvonette Silva Gonçalves

      -Se você quer milagres, não procure o budismo. O supremo milagre para o budismo é você lavar seu prato depois de comer.
      -Se você quer curar seu corpo físico, não procure o budismo. O budismo só cura os males de sua mente: ignorância, cólera e desejos desenfreados.
      -Se você quiser arranjar emprego ou melhorar sua situação financeira, não procure o budismo. Você se decepcionará, pois ele vai lhe falar sobre desapego em relação aos bens materiais. Não confunda, porém, desapego com renúncia.
      -Se você quer poderes sobrenaturais, não procure o budismo. Para o budismo, o maior poder sobrenatural é o triunfo sobre o egoísmo.
      -Se você quer triunfar sobre seus inimigos, não procure o budismo. Para o budismo, o único triunfo que conta é o do homem sobre si mesmo.
      -Se você quer a vida eterna em um paraíso de delícias, não procure o budismo, pois ele matará seu ego aqui e agora.
      -Se você quer massagear seu ego com poder, fama, elogios e outras vantagens, não procure o budismo. A casa de Buda não é a casa da inflação dos egos.
      -Se você quer a proteção divina, não procure o budismo. Ele lhe ensinará que você só pode contar consigo mesmo.
      -Se você quer um caminho para Deus, não procure o budismo. Ele o lançará no vazio.
      -Se você quer alguém que perdoe suas falhas, deixando-o livre para errar de novo, não procure o budismo, pois ele lhe ensinará a implacável Lei de Causa e Efeito e a necessidade de uma autocrítica consciente e profunda.
      -Se você quer respostas cômodas e fáceis para suas indagações existenciais, não procure o budismo. Ele aumentará suas dúvidas.
      -Se você quer uma crença cega, não procure o budismo. Ele o ensinará a pensar com sua própria cabeça.
      -Se você é dos que acham que a verdade está nas escrituras, não procure o budismo. Ele lhe dirá que o papel é muito útil para limpar o lixo acumulado no intelecto.
      -Se você quer saber a verdade sobre os discos voadores ou sobre a civilização de Atlântida, não procure o budismo. Ele só revelará a verdade sobre você mesmo.
      -Se você quer se comunicar com espíritos, não procure o budismo. Ele só pode ensinar você a se comunicar com seu verdadeiro eu.
      -Se você quer conhecer suas encarnações passadas, não procure o budismo. Ele só pode lhe mostrar sua miséria presente.
      -Se você quer conhecer o futuro, não procure o budismo. Ele só vai lhe mandar prestar atenção a seus pés, enquanto você anda.

      Portanto, baseando-se no budismo, a resposta para sua pergunta estaria
      nos 3 primeiros elos, dos “Os_12_Nidanas”. Ignorância, Luxúria e malícia. Essas são as primeiras 3 causas e efeitos para o sofrimento humano.

    2. Boa tarde Fabiano,

      A compreensão das Quatro Nobres Verdades pode ser útil para essa questão. O Budismo tem algumas vertentes, mas geralmente começa pelo Caminho Óctuplo, ali você tem a direção que o Buda instruiu para a vida. A resposta budista mais indicada é sempre a de um mestre, pois eles tem o estudo profundo e a realização dos ensinamentos.

      Uma resposta do Mestre Zen Tokuda Igarashi, por exemplo, pode ajudar:
      http://www.tokuda-igarashi.com/salvar-todos-os-seres/

      Você vê que ele fala de um movimento para o “despertar” em si mesmo e outro simultâneo de compaixão por todos os seres, de serviço e ajuda.

      Na minha visão, acho um pouco difícil falar “genericamente” de um caso em particular. Tipo “isso é o indicado”, pois tudo é único e vivo. É necessário uma reflexão íntima sobre o que está envolvido, um trabalho quase terapêutico sobre o que acontece entre você e o mundo, sua motivação e atitude de ajuda, a circunstância e o movimento do outro (no caso que você citou do seu irmão). Há milhões de possibilidades e o que acontece entre vocês é único, e soberano sobre qualquer generalidade. Para além da situação em si, há você e seu próprio caminho, que é a principal obra da vida, com sua prática e suas revelações. Quanto mais realizamos a verdade por nós mesmos, acho eu, mais vamos poder ajudar os outros a realizarem por eles. E isso só acontece com a prática, como diz Tokuda.

      “Si mesmo é de fato o salvador da pessoa, pois que outro salvador poderia haver?” (Buda, no Dharmapada).

      O texto desse post é uma reflexão muito mais íntima do que qualquer indignação com o mundo exterior. Suspeito sempre quando corremos pro mundo com muito desejo e pouca consciência de nós mesmos. Os problemas existem e vamos vivendo com eles, mas o movimento que o texto pede, e que o Budismo também ensina, é de abrir a atenção, de ampliar a consciência, e daí se segue um grande caminho para o despertar.

      Cada um tem uma visão desse texto, e sinto que ele provoca uma variedade de sensações nas pessoas. Uma, por exemplo, pode ser a percepção de quantos desejos egóicos temos e que acabam por fazer que nos alienemos da própria vida ao redor, que acontece no dia-a-dia, e assim as janelas vão ficando fechadas, as cortinas idem, o acordar fica apressado, o café engolido, etc. Então o texto pode nos ajudar a abrir as cortinas, a tomar consciência, a buscar o equilíbrio. Nada de culpa, apenas responsabilidade e um olhar real e compassivo para nós mesmos.

      Há várias pessoas aqui que talvez possam te ajudar, muitos budistas, e é possível que mais palavras apareçam.

      PS: De qualquer maneira, se você continua com dúvidas, fique com sua primeira impressão. O texto não acima não é um texto budista, é de uma jornalista que escreveu por sua própria inspiração, sobre um tema que pode ter alguma conexão com o auto-conhecimento, e por isso está citado aqui.

      Um abraço grande,
      Nando

    3. Opa, enviei a resposta e já havia uma ótima aqui. :-)

      Obrigado, Critico. Bela resposta, agradecimentos estendidos à Rev Yvonette Silva Gonçalves, um texto de cortinas abertas.

      ABS,
      Nando

  4. says: crítico

    Muito bom mesmo esse texto, ele abrange tantos temas com uma tremenda simplicidade que fiquei de cara.

    É muito difícil abrir mão dos nosso hábitos, da nossa rotina, do nosso trabalho, da nossa casa, dos nossos dogmas/religiões, do nosso modo de pensar e ver as coisas, do nosso ego, da família, do nosso dinheiro, apegos, sonhos, das nossas férias e viagens, do nosso conforto, ou até mesmo das nossos medos, dos nossos erros, dificuldades, das nossas manias, dos nossos problemas, das nossas doenças etc, e que acabamos por nos sentir completos com esses “atributos”.

    E quando pensamos em nos livrar, admitimos a nós mesmos que estamos acostumados/apegados com “isso”, com “aquilo”, ou com “ela ou com “ele”, e vemos que estamos em nossa própria prisão, onde nossos pais e nós mesmos nos colocamos lá ou aí.

    Mas muita calma nessa hora, quem disse que isso é ruim?

    Talvez seja mera ilusão a “liberdade”, a “iluminação” etc. Talvez tudo isso seja só uma ideia para nos confortar e em nosso caminho “buscar as coisas do alto”, deve.

    Sair de nós mesmos? Deixar de ser autêntico? Pra que lançar fora essa “missão” se eu posso completa-la?

    Talvez tudo isso que vemos, que nos faz entrar em conflito com nós mesmos, seja um teste. Um teste para ver se eu terei a coragem para deixar de ser eu mesmo.

    Melhor ou pior tanto faz, somos Únicos porém não somos “especiais”. Ninguém é perfeito. Temos metas em nossas vidas, completa-la é a nossa missão, tudo isso de “mudar” ou “converter” vem em segundo, não é prioridade. Vejo que não somos super-heróis, então vamos pelos menos faz a nossa pequena parte, vamos nos doar em prol do próximo e das nossas metas. O nosso “EU” é pura vacilação, pense por si, mas nunca pense em si mesmo.

    Se o mundo é de concreto vamos concretizar, se o mundo, a realidade é matéria, vamos conquistar. Ninguém está tomando conta dos nossos pensamentos, ou dos nossos erros. Tudo faz parte da vida, quando a vida chegar ao fim, nada mais fará parte dela, e as nossas conquistas viverão para sempre.

    talvez…

    1. Boas perguntas. Essa é uma abordagem essencial para a reflexão que vem junto com o texto: não cair no movimento do pêndulo, onde o preto é a fuga do branco e o branco é a fuga do preto.

      O melhor usufruto dessa tomada de consciência é a tomada de consciência em si. Mais e mais aprofundada, onde há liberdade. Se algo brotar naturalmente dela, perfeito. Mas não do desejo de evitar ou de fugir ou de compensar ou de contrapor.

      Ninguém disse que isso é ruim. A impressão de ser é pelo automatismo que parece ter, pela falta de consciência, e, com ela, a falta de vida.

      Saudações,
      Nando

  5. says: Silas Vega

    A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

    1. Olá Yanka,

      Acho que ela fala em “se acostumar” ali para significar o manipular e o dessensibilizar a experiência de viver. Para evitar — e, por assim dizer, isolar uma parte da realidade para não ter que vivê-la. Até chegar à expressão mais forte da sentença: “poupar o peito”. Como se super-proteger o coração aumentasse a vida, quando na verdade diminui. Porque a gente se acostuma.

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