Um exercício de percepção, de Heidegger, para escaparmos da ‘condição moderna deteriorada’ em que vivemos

O texto abaixo é de autoria do filósofo e escritor paulista Paulo Ghiraldelli Jr, num post do seu blog intitulado “O Meu Heidegger Essencial“, onde escreve em vários pontos o que considera ser a essência da filosofia do alemão Martin Heidegger (1889-1976) – ou o que, “em boa medida, ele propõs como filosofia”. Sugerindo um exercício de percepção do que se vê através de uma janela, com o olhar para a paisagem lá fora, Paulo tenta sintetizar as conclusões de Heidegger sobre nossa experiência real e o que vem antes de nós, como a linguagem e o significado do que recebemos como estímulo (visual, auditivo, etc). O objetivo é “que pudéssemos voltar a conviver com o que teríamos perdido: o ser – aquilo que é e que se mostra, e não o que é representado“.

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“O Meu Heidegger Essencial” (TRECHO)
Por Paulo Ghiraldelli Jr.

Um exercício pode levar ao entendimento do que Heidegger planejou para escapar da condição moderna e deteriorada em que estaríamos vivendo. Por exemplo, olhe você para determinada paisagem na sua janela e comece a descrever o que vê. Perceba que cada coisa que enuncia – prédio, carro, árvore, cachorro – não indica uma experiência sua com o que é enunciado, por sua deliberação. Perceba que cada palavra enunciada já estava dada antes, criada e estabelecida junto de toda uma rede de outras palavras; ou seja, tudo que você aprendeu como sendo uma semântica e uma sintaxe que dão o norte, o rumo, o conteúdo e tudo o mais do que pode fazer ao falar do que fala. Todavia, a paisagem e tudo nela podem deixar de serem percebidos como nomes dados por você, e podem aparecer como efetivamente são. Isso tudo é o que a linguagem diz; e a linguagem é essa rede anterior a você. Essa experiência fenomenológica pode ocorrer, se você ouvir a linguagem. É ela, a linguagem, que fala, e não você que fala com ela. Nela, na linguagem, há a experiência originária – mas não é a sua experiência se você não a escuta. Não é a experiência autêntica se você, em vez de escutar a linguagem, escuta apenas a você mesmo falando. Efetivamente, a experiência fenomenológica mostra que caímos nela, na linguagem, e ela fala por nossa boca. Não enxergamos nada do que pensamos que estamos enumerando e falando em uma descrição, pois o que efetivamente ocorre é a linguagem falando. Então, o melhor é prestar atenção nela e, com sorte, ouviremos o que é – o ser que se manifesta em sua morada, a linguagem. Olhamos para a janela, mas não vemos o que a ciência diz que vemos e o que imaginamos que seria uma experiência. Vemos a luz? Não! Vemos uma coisa. Mas que coisa? A ciência diz que é a luz, por meio de ondas, atinge a coisa e, então, pega nossa retina – e assim vemos a coisa que está diante de nós e emitimos um som com o qual damos nome àquela coisa. É isso? Nada disso. Não vemos a luz ou ondas. E a coisa que vemos só se delimita, só ganha contorno, só recebe algum significado por já estar prenhe de significado na teia da linguagem, e de modo algum fomos nós os autores do significado. Em uma experiência autêntica, para além do que a ciência ensina que é a experiência, vemos coisas que são o que são por estarem se manifestando como som emitido pelas palavras da linguagem; ou seja, ela própria, a linguagem, usando nossa boca, nos fala e fala para todos – nela, em sua rede, há o significado e, então, o som se faz som, palavra. Temos a capacidade de ouvi-la? Essa capacidade de ver o fenômeno da linguagem, nessa dimensão profunda que escapa do modo moderno de conversar (este que implica no sujeito-objeto e na representação) foi o método Heidegger. Foi isso que, em boa medida, ele propôs como filosofia.

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2 Comments

  1. says: norma

    Não vemos as coisas como são: vemos as coisas como somos.
    Anaïs Nin
    ++++
    E aí, você tem outra cicatriz?
    Outra? Não tenho nenhuma…
    Tem sim! Uma bela cicatriz corporal, que te acompanhará do nascimento à morte e que você chama de umbigo…
    Norma
    Boa Sorte!

  2. says: Leoba

    ” Palavras não são apenas palavras. Elas têm seus próprios humores, seus próprios climas. Quando uma palavra encontra um lugar dentro de você, traz um novo clima à sua mente, uma abordagem diferente, uma visão diferente. Dê um outro nome a um objeto conhecido e perceba: ele ficará imediatamente diferente.

    Quando você estiver vivendo uma experiência, é muito importante lembrar de não congelá-la em nenhuma palavra, porque isso a reduziria. Digamos que você esteja sentado em uma tarde silenciosa. O sol acabou de se por, as primeiras estrelas começam a surgir. Apenas esteja lá. Não diga nada, nem mesmo ‘Isto é belo’, pois, a partir do momento em que você disser que algo é belo, já não será mais a mesma coisa. Ao dizer ‘belo’, você traz de volta o passado: todas as experiências que você já chamou de ‘belas’ atribuíram um valor a essa palavra. Sua palavra ‘belo’ contém muitas experiências de beleza, mas essa que você está vivendo agora é única, completamente nova. Nunca antes foi assim, e nunca mais será assim de novo.

    Por que trazer de volta o passado? O presente é tão vasto, o passado é tão restrito. Por que olhar através de um buraco na parede quando você pode sair e contemplar o céu aberto? Tente não usar palavras, mas, se você tiver que usá-las, escolha suas palavras com muito cuidado, porque cada uma delas possui uma nuança própria. Seja poético, escolha as palavras com sensibilidade, com amor e carinho.

    Há outra coisa que você deve ter em mente: algumas palavras vêm dos sentimentos, enquanto outras vêm do intelecto. Procure deixar de lado as palavras do intelecto, use cada vez mais as palavras dos sentimentos. Há palavras políticas e há palavras religiosas. Deixe de lado as palavras políticas. Também há palavras que geram conflitos: assim que você as pronunciar, haverá uma discussão. Então nunca use a linguagem lógica e argumentativa. Use a linguagem do afeto, do carinho, do amor para evitar as discussões.

    Se você começar a perceber e sentir as coisas dessa forma, verá surgir uma enorme mudança. Se você viver de forma minimamente consciente, muita dor e muito sofrimento podem ser evitados. Uma única palavra pronunciada sem consciência pode criar uma longa cadeia de sofrimento. Uma pequena diferença, um desvio mínimo trará muitas mudanças. É preciso ser extremamente cuidadoso e usar as palavras apenas quando for absolutamente necessário. Evite palavras contaminadas. Use palavras novas, livres de controvérsias, que não gerem argumentos ou discussões, que apenas expressem seus sentimentos.

    Se você puder tornar-se um profundo conhecedor das palavras, toda sua vida será completamente diferente. Suas relações serão completamente diferentes, porque noventa e nove por cento de uma relação se dá através de palavras e gestos. Os gestos também são palavras. Há palavras que já criaram muitos problemas para você, mas ainda assim você continua a repeti-las. Se uma palavra gera sofrimento, raiva, conflitos, discussões, deixe-a de lado. Qual o sentido em continuar usando-a? Substitua essa palavra por algo melhor: pelo silêncio. Depois do silêncio, há o canto, a poesia, o amor…” OSHO

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