Respostas preciosas de Sri Nisargadatta: “somente merecem a paz aqueles que não a perturbam”

A oportunidade de interpelar um mestre como o indiano Sri Nisargadatta Maharaj (1897-1981) é raríssima hoje em dia (ele de fato é impossível, pois faleceu em 81), principalmente numa sequência de tantas perguntas como a encontrada abaixo, publicada no livro “Eu Sou Aquilo” (I Am That), sua obra mais conhecida, cuja primeira edição data de 1973. Talvez apenas em retiros e satsangs seja possível permanecer com um mestre por tantas perguntas e respostas, tratando de felicidade, paz permanente, mente quieta, êxtase, o contato consigo mesmo, a prática, o prazer, a busca e as outras questões fundamentais por quais passa esse pequeno “interrogatório”, respondido com a firmeza habitual de Sri Nisargadatta. A sequência de perguntas e respostas é bem maior, pois o livro inteiro é uma reunião de sessões como esta, em mais de 500 páginas, com mais de 2.500 respostas de Sri Nisargadatta.

O capítulo do livro onde está esse trecho é intitulado “O Self está além da Mente” (8- The Self Stands Beyond Mind), mas há um pressuposto do Vedanta que sustenta que a Verdade deve ser capaz de atravessar uma análise lógica — ou que ao menos não pode ser destruída por ela. Assim, Sri Nisargadatta — e tantos outros mestres — participam dessas sessões onde os questionamentos aproximam as pessoas da verdade, e se não levam exatamente ao Ser, ao menos procuram mostrar a diversidade de ilusões que mantemos por falta de um olhar mais atento e profundo sobre o que vivemos.

Cada pergunta e resposta abaixo, mesmo quando curta, pode ser um universo em si mesma.

PS: O livro está disponível em língua portuguesa pela Satsang Editora, tradução de Patricia de Queiroz Carvalho Zimbres.

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O SELF ESTÁ ALÉM DO SER
Por Sri Nisargadatta Maharaj, em “EU SOU AQUILO” (cap.8)

Questionador: Quando criança, eu frequentemente experimentava estados de completa felicidade, chegando ao êxtase. Mais tarde, eles cessaram. Mas desde que vim para a Índia eles reapareceram, principalmente depois que o encontrei. Ainda assim, esses estados, embora maravilhosos, não são duradouros. Eles vão e vêm sem que eu saiba quando voltarão.

Maharaj: Como alguma coisa pode permanecer estável em uma mente, quando ela mesma não é estável?

Q: Como posso tornar minha mente estável?

M. Como pode uma mente instável tornar-se a si mesma estável? É claro que não pode. É natureza da mente ficar vagando. Tudo que se pode fazer é deslocar o foco da consciência para além da mente.

Q: Como se faz isso?

M: Recuse todos os pensamentos, exceto um: o pensamento “Eu Sou”. A mente se rebelará no início, mas com paciência e perseverança, ela irá render-se e ficar quieta. Uma vez quieta, as coisas começarão a acontecer espontânea e naturalmente, sem nenhuma interferência da sua parte.

Q: Posso evitar esta batalha com minha mente?

M: Sim, você pode. Apenas viva sua vida da maneira como ela se apresenta, mas fique alerta, vigilante, permitindo que cada coisa aconteça da maneira que acontecer, fazendo as coisas naturais de um jeito natural, sofrendo, regozijando-se, da forma como as coisas vierem. Esta também é uma maneira.

Q: Bem, então eu posso também me casar, ter filhos, tocar um negócio… ser feliz.

M: Certamente. Você pode ser feliz ou não, a escolha é sua.

Q: Bem, eu quero a felicidade.

M: A verdadeira felicidade não pode ser encontrada em coisas que mudam e se vão. Prazer e dor se alternam inexoravelmente. A felicidade vem do self e pode ser encontrada somente nele. Encontre o seu self real (swarupa) e tudo mais virá com ele.

Q: Se o meu verdadeiro self é paz e amor, por que ele é tão inquieto, tão agitado?

M: Não é seu ser real que é agitado, mas seu reflexo na mente é que parece agitado, pois a mente é agitada. É como o reflexo da lua na água movimentada pelo vento. O vento do desejo agita a mente e o “eu”, que nada mais é do que o reflexo do Self na mente, parece mutável. Mas essas ideias de movimento, inquietação, prazer e dor estão todas na mente. O Self está além da mente, consciente, mas sem envolvimento.

Q: Como alcançá-lo?

M: Você é o Self, aqui e agora. Deixe a mente em paz, fique consciente, não se envolva e você irá perceber que permanecer alerta, mas desprendido, assistindo os acontecimentos indo e vindo, é um aspecto da sua natureza real.

Q: Quais são os outros aspectos?

M: Os aspectos são em número infinito. Conheça um e você conhecerá todos.

Q: Diga alguma coisa que possa me ajudar.

M: Você é quem sabe melhor o que você necessita!

Q: Eu não tenho descanso. Como posso obter paz?

M: Para que você quer paz?

Q: Para ser feliz.

M: Você não é feliz?

Q: Não, eu não sou.

M: O que o torna infeliz?

Q: Eu tenho o que não quero, e quero o que não tenho.

M: Por que você não inverte a situação: queira o que você tem e não se importe com o que não tem?

Q: Eu quero o que é prazeroso e não quero o que é doloroso.

M: Como você sabe o que é prazeroso ou não?

Q: Em função da experiência passada, é claro.

M: Guiado pela memória você tem perseguido o prazeroso e fugido do não prazeroso. Você tem obtido sucesso?

Q: Não, não tenho. O prazeroso não dura. A dor instala-se novamente.

M: Que dor?

Q: O desejo pelo prazer, o medo da dor, ambos são estados de angústia. Existe um estado de prazer puro?

M: Cada prazer, físico ou mental, necessita de um instrumento. Tanto os instrumentos físicos como mentais são materiais, eles cansam e tornam-se batidos. O prazer que eles proporcionam é necessariamente limitado em intensidade e duração. A dor é o pano de fundo de todos os seus prazeres. Você os quer porque você sofre. Por outro lado, a busca pelo prazer é a causa da dor. É um círculo vicioso.

Q: Eu posso ver o mecanismo da minha confusão, mas não vejo a forma de sair dele.

M: O exame detalhado do mecanismo mostra o caminho. Afinal, sua confusão está só na sua mente, que nunca lutou muito contra a confusão e nunca se agarrou tanto a ela. Sua mente se rebela apenas contra a dor.

Q: Então, tudo o que tenho a fazer é permanecer confuso?

M: Fique alerta. Questione, observe, investigue, aprenda tudo que puder sobre a confusão, como ela opera, o que ela faz a você e aos outros. Ao esclarecer a confusão você se livrará dela.

Q: Quando olho para dentro de mim, percebo que meu desejo mais forte é criar um monumento, construir alguma coisa que possa durar mais do que eu. Mesmo quando eu penso em um lar, esposa e filhos, é porque eles são uma testemunha duradoura e sólida de mim mesmo.

M: Certo, construa um monumento para você. Como você pensa fazer isso?

Q: Importa pouco o que eu construo, desde que seja permanente.

M: Certamente, você vê por si mesmo que nada é permanente. Tudo se desgasta, quebra, dissolve. O próprio chão onde você constrói também desaparecerá. O que você pode construir que dure mais que tudo?

Q: Intelectualmente, verbalmente, estou consciente de que tudo é transitório. Ainda assim, de alguma forma meu coração deseja permanência. Quero criar algo que dure.

M: Então você precisa construir isso com alguma coisa duradoura. O que você tem que é duradouro? Nem seu corpo, nem sua mente duram. Você precisa procurar em outro lugar.

Q: Eu anseio pela permanência, mas não a encontro em nenhum lugar.

M: Você, você mesmo não é permanente?

Q: Eu nasci e meu destino é morrer.

M: Você pode verdadeiramente dizer que você não era antes de nascer e você pode possivelmente dizer quando estiver morto: “Agora eu não sou mais”? Você não pode dizer, pela sua própria experiência, que você não é. Você só pode dizer “Eu sou”. Os outros também não podem dizer-lhe “você não é”.

Q: Não há “Eu sou” no sono.

M: Antes de fazer tais afirmações examine cuidadosamente seu estado de vigília. Você logo descobrirá que ele está cheio de falhas, quando a mente fica em branco. Perceba como você se recorda pouco mesmo quando totalmente acordado. Você não pode dizer que você não estava consciente durante o sono. Você apenas não se lembra. Uma falha na memória não é necessariamente uma falha na consciência.

Q: Posso lembrar, por mim mesmo, meu estado de sono profundo?

M: É claro! Eliminando os intervalos durante suas horas de vigília você gradualmente eliminará os longos intervalos de ausência da mente, que você chama de sono. Você ficará consciente de que está dormindo.

Q: Mas o problema da permanência, da continuidade do ser, ainda continua sem solução.

M: A permanência é mera idéia, nascida da ação do tempo. O tempo, por sua vez, depende da memória. Por permanência você entende uma memória que não falha através de um tempo que seja contínuo. Você quer eternizar a mente, o que não é possível.

Q: Então o que é eterno?

M: Aquilo que não muda com o tempo. Você não pode eternizar uma coisa transitória – somente o imutável é eterno.

Q: Estou familiarizado com o sentido geral do que você diz. Não desejo mais conhecimento. Tudo que eu quero é paz.

M: Você pode obter toda paz que você quer apenas pedindo.

Q: Eu estou pedindo.

M: Você deve pedir com um coração não dividido e viver uma vida integrada.

Q: Como?

M: Desprenda-se de tudo que não deixa sua mente descansar. Renuncie a tudo que perturba sua paz. Se você quer paz, mereça-a.

Q: Certamente todos merecem paz.

M: Somente a merecem aqueles que não a perturbam.

Q: De que forma eu perturbo a paz?

M: Sendo um escravo de seus desejos e medos.

Q: Mesmo quando eles são justificáveis?

M: Reações emocionais, nascidas da ignorância e da inadvertência, nunca se justificam. Procure uma mente clara e um coração limpo. Tudo que você precisa é manter-se bem alerta, investigando a verdadeira natureza de você mesmo. Este é o único caminho para a paz.

Sri Nisargadatta Maharaj, do livro “I Am That” (Eu Sou Aquilo)

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Compartilhado por Angela Água Agresta, do site Yoga.pro.br.

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