“O poder dos desejos não-satisfeitos é a raiz da escravidão humana”: de Sri Yukteswar a Paramahansa Yogananda

yukteswar-yoganandaJá sabemos isso pelos ensinamentos centrais do histórico Buddha Shakyamuni, que concentrou sua mensagem primeira nesta mesma direção: o desejo é a fonte do sofrimento humano. Nesse trecho (abaixo) lembrado pelo célebre iogue indiano Paramahansa Yogananda (1893-1952) no seu livro “Autobiografia de um Iogue“, em um momento em que seu mestre Sri Yukteswar Giri (1855-1936) lhe dava explicações sobre as dimensões da existência, o desejo é definido não só como fonte do sofrimento, mas como prisão da existência humana, e também causa dos ciclos de reencarnação. Sri Yukteswar é um grande mestre de Kriya Yoga respeitado para além dos círculos de Paramahansa Yogananda, estudioso de obras como o Bhagavad Gita e a Bíblia cristã, além de autor do livro “The Holy Science“, que explica a unidade no propósito de diferentes religiões.

As explicações de Sri Yukteswar são tão preciosas e decisivas para Yogananda que ele diz que essa conversa lhe havia conferido a “percepção clara e definitiva das casas enigmáticas no tabuleiro de xadrez da vida e da morte“. São páginas e páginas em que Yogananda narra as explicações detalhadas de seu mestre, e revela ainda que duas horas inteiras dessa conversa na dimensão sutil foi ocultada do livro, por motivos pessoais.

Mas que desejo é esse?, podemos perguntar. Seria desejos cotidianos, desejos existenciais? Um carro novo? Por uma promoção no trabalho? Por um tipo de comida, cor, diversão? Por uma circunstância específica? Por um lugar, pessoa, uma versão melhor de mim mesmo? Isso é fundamental investigar e perceber. Podemos começar pelo próprio Buda, que usou a palavra “tanha” para falar dessa vontade que é desejo, e disse em sua Segunda Nobre Verdade: “é este desejo que conduz a uma renovada existência, acompanhado pela cobiça e pelo prazer, buscando o prazer aqui e ali; isto é, o desejo pelos prazeres sensuais, o desejo por ser/existir, o desejo por não ser/existir”. O monge budista Bhikkhu Bodhi ajuda a explicar isso, dizendo que há três tipos de desejo, e que apenas um deles é insalubre: “tanha significa esses desejos insalubres – o desejo baseado na ignorância (avidya), a vontade de gratificação pessoal” (veja mais neste outro post e neste).

Outro célebre iogue indiano, Swami Sivananda (1887-1963), disse quase a mesma coisa: “Se não há egoísmo, se a mente está livre de desejos e gostar e desgostar, você não irá mais entrar no mundo do nascimento e da morte”.

O trecho segue abaixo deste vídeo, que mostra 11 segundos de Paramahansa Yogananda ao lado de Sri Yukteswar, raro encontro de discípulo e seu mestre gravado em vídeo. Mais destes momentos podem ser assistidos no filme “AWAKE, A Vida de Yogananda“, em cartaz nos cinemas do Brasil.

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AUTOBIOGRAFIA DE UM IOGUE
Capítulo: 43 – A Ressurreição de Sri Yukteswar
Por Paramahansa Yogananda

“O corpo carnal é feito de sonhos materializados, solidificados, do Criador. Dualidades sempre caracterizam a vida na Terra: saúde e doença, prazer e dor, ganho e perda. Os seres humanos encontram limitação e resistência na matéria tridimensional. Quando a doença ou causas diversas abalam severamente o desejo de viver, intervém a morte; cai ao chão, temporariamente, o pesado sobretudo da carne. A alma, porem, continua aprisionada nos corpos astral e causal. A força de coesão que mantém unidos os três corpos é o desejo. O poder dos desejos irrealizados é a raiz de toda a escravidão do homem.

Desejos físicos radicam-se no egoísmo e nos prazeres dos sentidos. A compulsão ou a tentação da experiência sensorial é mais poderosa que a força do desejo referente a apegos astrais e percepções causais.

Desejos astrais concentram-se em prazeres de tipo vibratório. Os seres astrais deliciam-se com a etérea música das esferas e extasiam-se com a visão do universo inteiro criado como expressão inesgotável de luz cambiante. Também cheiram, saboreiam e tocam a luz. Assim, seus desejos relacionam-se com seu poder de condensar todos os objetos e experiências em formas de luz ou em pensamentos condensados ou sonhos.

Desejos causais são realizações do intelecto. Os seres quase livres, alojados apenas no corpo causal, vêem o cosmo inteiro como projeções das idéias – sonhos de Deus; tudo experimentam em puríssimo pensamento. Consideram o gozo de sensações físicas e deleites astrais, por isso, grosseiros e sufocantes para a requintada sensibilidade da alma. Os seres causais realizam seus desejos, materializando-os instantaneamente. As almas que se cobrem somente com o delicado véu do corpo causal, podem materializar universos, à semelhança do Criador. Tendo todos os mundos uma só textura, a do sonho cósmico, uma alma, na diáfana veste causal, tem vastos poderes de realização.

Sendo invisível por natureza, a alma só pode ser percebida pela presença de seu corpo ou corpos. A mera presença de um corpo significa que sua existência se tornou possível devido a desejos irrealizados . Enquanto a alma do homem se encontra encerrada em um, dois, ou três frascos corporais, tampados hermeticamente com as rolhas da ignorância e dos desejos, não pode mergulhar no oceano do Espírito. Destruído o denso receptáculo físico pelo martelo da morte, seus dois outros invólucros – o astral e o causal – ainda persistem e impedem que a alma se una, com absoluta consciência, à Vida Onipresente. Quando se alcança, através da sabedoria, a ausência do desejos, seu poder desintegra os dois vasos remanescentes. A diminuta alma do homem emerge, livre afinal, unificada com a Amplidão Imensurável.”

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8 Comments

  1. says: Alan

    Caros amigos,

    Quando estudei sobre o budismo no templo ZuLai, em Cotia, SP, foi-me ensinado que Buda teria explicado a origem do sofrimento na ignorância, avidya. Não é a ignorância da falta de estudo ou falta de educação. Mas a ignorância que nos afasta de nosso verdadeiro ser e faz com que nos identifiquemos com nosso nome, profissão, família, posses, status etc.

    A partir desta ignorância surge, então, o desejo (de ter ou de não perder o que se conquistou) e, juntamente com o desejo, advém a ira (ânsia de ter ou medo de perder).

    O Texto coloca o desejo como origem do sofrimento, a segunda nobre verdade… É isso me deixou um pouco confuso. Não que isso invalide o texto, mas a “luta” para “vencer” a mente não seria para acabar com esta ignorância e acabar com o desejo e a ira, alcançando a iluminação?

    Agradeço o esclarecimento. Namastê

    1. Namastê Alan,

      É uma oportunidade preciosa receber um ensinamento pessoal nesse retiro que você foi. No contexto da escola, com um mestre, isso tem valor incomensurável.

      Dito isso, e como visão pessoal, não considero as visões excludentes, pelo contrário até, são complementares, estão no mesmo sentido. E, como você, também compreendo a Avidya como talvez “causa fundamental” (ver “originação codependente”).

      Mas falando do texto em si, as traduções dos registros da Segunda Nobre Verdade geralmente não falam de Avidya, e sim de Desejo, “tanha”. Há um subentendimento, no entanto, desse desejo como a causa mais imediata, não a mais profunda ou mais fundamental, do sofrimento. Por isso Buda enfatiza a renúncia (sobre o desejo) dizendo que “Quando um bhikkhu abandonou a corrupção da mente nesses seis casos, a sua mente se inclina pela renúncia. Uma mente fortificada pela renúncia se torna maleável em relação àquelas coisas que devem ser realizadas através do conhecimento direto.” (Samyutta Nikaya). E, naturalmente, há o Caminho Óctuplo inteiro para isso.

      “Conhecimento direto”, nesse caso, e ao menos no meu entendimento, seria a experiência que extingue Avidya. Mas só possível conforme o processo acima.

      Uma hipótese simples, então, é que o ensinamento dado em Cotia tenha sido uma ampla visão da Segunda Nobre Verdade. O que faria bastante sentido. Mas é apenas uma hipótese.

      Temos que realizar esse entendimento e esse sentido.

      Namastê,

      Nando

  2. says: Alan

    Agradecido pela explicação… há algum texto aqui no blog ou que vc possa indicar sobre o Caminho Óctuplo? Gostaria de ler mais a respeito.

    Eu gostaria de postar uma outra questão que realmente se distância desta. Mas é que sempre me causou estranhamento… vejo o Budismo como uma filosofia calcada na Tríplice Jóia (Buddha, Dharma e Sanga). Além das Quatro Nobres Verdades e do Caminho Óctuplo, há a ideia de causa e condição e da vacuidade, que pelo pouco que conheço do budismo, fazem muito sentido. Tanto que não há um Deus nesta filosofia. E segundo o Dalai Lama, justamente o que distância o budismo do yoga é que este estaria preocupado com o Atman e aquele, com o Anatman. Como pode então haver céu e inferno (principalmente porque a reencarnação nem é vista tão espiritualmente, como se encaixa essa ideia de que as almas poderiam, por ex., ir para o inferno famélico?).

    Agradecido pela explicação e atenção,

    Namastê

    Alan

    1. Oi Alan,

      Não tenho um texto específico sobre o Caminho Óctuplo. Ainda. Levarei como sugestão.

      Mas te deixo uma pergunta como resposta (sic) preliminar: e se céu e inferno não fossem lugares, mas estados da existência (da mente)?

      Namastê,
      Nando

  3. says: André Mariano

    E quando se experimenta essa completa ausência de desejos, porém apenas momentaneamente, digo, pude experimentar isso, mediante prática meditativa, mas ao voltar pra vida “comum” continuo com os egos como sempre foram, só que agora com uma experiência reveladora e extremamente intensa; porém não concebo como seria possível viver em um estado de ausência de desejo, não com o corpo físico. A impressão que me ficou, é a de que o corpo físico está impregnado pelos desejos, então não concebo o como eliminá-los em vida?

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