“Você precisa entender o que significa o desejo, as religiões o confundiram muito sobre isso”, um esclarecimento de Osho

Semana passada o tema do “desejo” como fonte do sofrimento humano foi assunto de um post aqui, com a citação de ensinamentos budistas antigos, e um evento no fim-de-semana me chamou a atenção para o perigo da interpretação que a palavra “desejo” pode sofrer no Ocidente — e o benefício que um esclarecimento adicional poderia ter nesse sentido, aqui no site. O transporte de um conceito tão importante entre geografias, culturas e épocas tão diferentes já é extremamente delicado por natureza, mas é mais ainda neste caso, pois envolve uma palavra que foi (e ainda é) tratada com abordagens distorcidas e repressivas por culturas e religiões deste lado do globo (onde não é difícil conectar o conceito de desejo à noção religiosa de “pecado” e ao sentimento de “culpa“, por exemplo).

Assim, para ajudar a desfazer compreensões equivocadas, gostaria de trazer um texto de um conhecido filósofo indiano que atravessou os continentes e se tornou popular por entender e falar abertamente sobre tudo, inclusive sobre problemas interculturais e interreligiosos — e, embora polêmico, tem sido útil e esclarecedor para muitas pessoas. “A culpa é o segredo de todas as religiões oficiais“, diz Bhagwan Shree Rajneesh, o Osho (1931-1990), no texto abaixo, intitulado “Todo Desejo é uma Escravidão“.

Quem leu os dois posts sobre o desejo como Buda ensinou (o primeiro aqui e o segundo aqui) vai notar que o desejo é tratado indiscriminadamente neste texto, ou seja, todo desejo seria fonte de mais sofrimento — mesmo aqueles que aparentemente são nobres, como o desejo de iluminação e o desejo de ajudar os outros. De uma certo ponto-de-vista, esses discursos podem não ser contraditórios. Mas fica em aberto para a consideração e vivência de cada um.

Mais uma observação. O texto é cheio de afirmações fortes, como é característico do Osho, e é preciso um pouco de cuidado. Ao ler uma frase como “Se você desejou, você caiu vítima“, é preciso compreender que se trata da identificação com o desejo experimentado, e não exatamente da existência do desejo na experiência, pois, como está explicado várias vezes na continuação do texto, se houver consciência o desejo é compreendido e então é possível que uma transformação aconteça. “Naropa diz que se você puder estar alerta, cada desejo o leva para o nirvana“.

Segue o trecho do referido artigo.

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TODO DESEJO É UMA ESCRAVIDÃO” [trecho] Por Osho, do “Livro dos Segredos”

Você precisa entender o que significa o desejo – e as religiões o confundiram muito sobre isso. Se você deseja alguma coisa do mundo, elas chamam isso de desejo. Se você deseja alguma coisa do outro mundo, elas dão um nome diferente. Isso é absurdo. Desejo é desejo! Não faz diferença qual é o objeto do desejo. O objeto pode ser qualquer coisa – deste mundo, material, ou de outro mundo, o espiritual – mas o desejar permanece o mesmo.

Todo desejo é uma escravidão. Mesmo que você deseje Deus, é uma escravidão; mesmo que você deseje liberação, é uma escravidão. E a liberação não pode acontecer a menos que esse desejar vá embora totalmente. Assim, lembre-se: você não pode desejar libertação, isso é impossível; isso é contraditório. Você pode se tornar sem desejo e, então, a libertação acontece. Mas ela não é um resultado de seu desejo. Ao contrário, ela é uma conseqüência do não-desejo.

Assim, tente entender o que é o desejo. Desejo significa que exatamente agora você não está bem, você não está à vontade. Neste exato momento, você não está à vontade consigo mesmo; e alguma outra coisa, no futuro, se satisfeita, lhe trará paz. A satisfação está sempre no futuro; nunca está aqui e agora. Essa tensão da mente pelo futuro é o desejo. O desejo significa que você não está no momento presente. E tudo o que existe é somente o momento presente. Você está em algum lugar no futuro e o futuro não existe. Ele nunca existiu, ele nunca existirá. Tudo o que existe é sempre o presente – este momento.

Essa projeção de sua satisfação em algum lugar, no futuro, é o desejo. Assim, qualquer que seja a satisfação futura é irrelevante. Pode ser o reino de Deus, o paraíso, o nirvana, pode ser qualquer coisa, mas se ela está no futuro, é desejo. E você não pode desejar no presente, lembre-se; isso não é possível. No presente você só pode existir, você não pode desejar. Como você pode desejar no presente?

O desejo conduz ao futuro, à fantasia, ao sonho. Por isso tanta insistência de Buda pelo não-desejo, porque somente no não-desejo você se move para a realidade. Com o desejo você se move para os sonhos. O futuro é um sonho e quando você projeta no futuro, você irá se frustrar. Você está destruindo a realidade do momento por sonhos futuros e esse hábito da mente permanecerá com você. Ele é fortalecido todo dia. Assim, quando seu futuro chegar, ele chegará na forma do presente e sua mente novamente se moverá para algum outro futuro. Ainda que você pudesse alcançar Deus, você não ficaria satisfeito. Do jeito que você é, isso é impossível. Mesmo na presença do divino, você se moveria para o futuro.

Sua mente sempre está se movendo para o futuro. Esse movimento da mente para o futuro é o desejo. O desejo não está relacionado com algum objeto – se você deseja sexo ou se deseja meditação, não faz diferença. O desejar é a coisa – você deseja. Isso significa que você não está aqui, significa que você não está no momento real e o momento presente é a única porta para a existência. O passado e o futuro não são portas, são paredes.

Assim, eu não posso chamar nenhum desejo de espiritual. O desejo como tal é mundano. O desejo é o mundo. Não há nenhum desejo espiritual; não pode haver. Esse é um truque da mente, uma fraude. Você não quer abandonar o desejo; então, você muda os objetos. Primeiro você estava desejando riqueza, prestígio, poder. Agora você diz que não deseja e que essas são coisas mundanas. Você as condena e aqueles que as desejam são condenados aos seus olhos. Agora você deseja Deus, o reino de Deus, o nirvana, moksha, o eterno, sat-chit-ananda, o Brahma. Agora você deseja isso e se sente muito bem. Pensa que está transformado, mas você não fez nada. Você permanece o mesmo.

Você está apenas trapaceando a si mesmo. E agora você está em uma enrascada maior, porque você pensa que isso é não-desejar. Você permanece o mesmo. A mente permanece a mesma; o funcionamento da mente permanece o mesmo. Você ainda não está aqui. Os objetos do desejo mudaram, mas a corrida, o sonho, permanece. E o sonho é o desejo – não o objeto.

Assim, tente me compreender. Eu digo que todo desejo é mundano, porque o desejo é do mundo. Assim, não é uma questão de mudar o desejo, não é uma questão de mudar os objetos. É uma questão de mutação, de uma revolução do desejo para o não-desejo – do desejo para o não-desejo, não dos velhos desejos para novos desejos, dos desejos mundanos para desejos de outro mundo, dos desejos materiais para os desejos espirituais; não! Do desejo para o não-desejo é a revolução!

Mas como se mover do desejo para o não-desejo?

Você só pode se mover se houver algum desejo. Se algum motivo vantajoso, alguma ambição, algum ganho existir, somente então você pode se mover do desejo para o não-desejo. Mas, então, você não está de forma alguma se movendo. Eu digo que com o não-desejo você atingirá bem-aventurança eterna. Isso é certo – que com o não-desejo a bem-aventurança eterna acontece. Mas se eu digo para você que com o não-desejo você ganhará a felicidade eterna, você tornará isso um objeto de desejo e, então, você perderá completamente o ponto. Ela não é o resultado, mas a conseqüência de uma profunda compreensão.

Assim, tente entender que com o desejo existe miséria e não pense que você já sabe disso. Você não sabe; do contrário, como você pode se mover para o desejo? Você ainda não se tornou consciente que desejo é miséria, que desejo é inferno.

Fique consciente! Quando você desejar alguma coisa, fique consciente. Então, mova-se com o desejo em alerta total e, então, você chegará no inferno.

Todo desejo leva à miséria, quer seja satisfeito ou não. Se satisfeito, ele leva mais cedo; não satisfeito ele leva mais tempo – mas todo desejo leva à miséria. Fique alerta de todo o processo e mova-se com ele. Não há pressa, porque nada pode ser feito com pressa e crescimento espiritual não é possível com pressa. Mova-se lentamente, pacientemente. Olhe todo desejo e, então, olhe como todo desejo se torna uma porta para o inferno. Se você estiver vigilante, mais cedo ou mais tarde você compreenderá que desejar é um inferno. No momento em que essa compreensão acontecer, não haverá desejo. De repente, o desejo desaparecerá e você estará em um estado de não-desejo. Eu não disse sem-desejo, eu simplesmente disse “não-desejo”.

Você não pode praticar isso, lembre-se; somente os desejos podem ser praticados. Como você pode praticar o não-desejo? Você não pode praticá-lo, você só pode praticar os desejos. Mas se você ficar alerta, você se tornará consciente de que eles levam à miséria. E quando cada desejo leva à miséria, quando isso se torna uma compreensão para você – não mera opinião e conhecimento, mas um fato compreendido –, o desejo desaparece, ele se torna impossível. Como você pode se conduzir para a miséria? Você sempre está se conduzindo para a felicidade – pensando que está – e sempre se movendo para a miséria. Isso está acontecendo há vidas e vidas. Você sempre pensa que isso ou aquilo é a porta do paraíso; e depois que você entra, sempre se dá conta de que aquilo é o inferno. E tem sido assim, sem nenhuma exceção; esse é sempre o caso.
Mova-se com atenção em cada desejo e permita que todo desejo o leve à miséria. Então, de repente, um dia a maturidade lhe acontecerá. Esse amadurecimento acontecerá a você: você compreende que todo desejo é miséria.

No momento em que você compreende isso, o desejo desaparece. Não existe necessidade de fazer algo então; o desejar simplesmente cai, murcha e você está em um estado de não-desejo. Nesse não-desejo o nirvana existe, a absoluta felicidade perfeita existe. Você pode chamar isso de Deus, de reino de Deus ou do que quer que você escolha chamar, mas lembre-se bem de que isso não é um resultado de seu desejo. É uma conseqüência do não-desejar e o não-desejar não pode ser praticado.

Aqueles que “praticam” o não-desejo, estão iludindo a si mesmos. Há muitos pelo mundo todo – bhikkhus, saniássins – que estão praticando o não-desejo. Você não pode praticar o não-desejo; nenhuma coisa negativa pode ser praticada. Por baixo, eles estão desejando, estão ansiando por Deus, pela paz que acontecerá, pela bem-aventurança que está esperando por eles em algum lugar, no futuro, além da morte. Eles estão desejando; eles chamam seus desejos de “desejos espirituais”.

Você pode enganar a si mesmo muito facilmente. As palavras são muito enganosas e você pode racionalizar. Você pode chamar um veneno de ambrosia, e quando você o chama ambrosia ele lhe aparece ambrosia. As palavras hipnotizam; isso é uma coisa. Mas esse sentimento, essa compreensão de que o desejo é miséria, deve ser seu.

Mary Stevens escreveu em algum lugar que ela estava visitando a casa de um amigo e a filha de seu amigo era cega. Mary Stevens ficou muito confusa porque a garota dizia: “Ele é feio! Eu não gosto dele!”. Ou então: “A cor deste vestido é linda!”.

Como ela era cega, Mary Stevens perguntou: “Como você sente que alguma coisa é feia e que uma cor é bela?”

A garota disse: “Minhas irmãs dizem isso para mim.”. Isso é conhecimento.

Buda disse que desejo é miséria e você continua repetindo. Isso é conhecimento. Você está desejando e você nunca viu que o desejo é miséria. Você simplesmente ouviu Buda dizer. Isso não funcionará. Você está simplesmente desperdiçando sua vida e oportunidade. Sua própria experiência pode transformá-lo; nada mais transforma. O conhecer não pode ser tomado emprestado. Se for tomado emprestado, trata-se apenas de uma fraude. Parece real conhecimento, mas não é. Mas por que nós seguimos um Buda ou um Jesus? Por quê? Por causa de nossa cobiça. Olhamos para os olhos de Buda e eles são tão pacíficos que a cobiça surge, o desejo de saber como atingir aquilo. Buda é tão bem-aventurado – sempre em êxtase. Um desejo surge: como ser como um Buda? Nós também desejamos tais estados.

Então, continuamos perguntando como Buda alcançou aquilo, como aquilo acontece. O “como” cria muitos problemas, porque então Buda dirá que aquilo acontece no “não-desejo”. E ele está certo, aquilo aconteceu no não-desejo. Mas quando escutamos que no não-desejo aquilo acontece, começamos a praticar o não-desejo, começamos a abandonar os desejos e todo o esforço é um desejo para ser como um Buda.

Buda não estava tentando ser como algum outro; ele não estava pedindo para ser um buda. Ele simplesmente estava tentando entender a sua própria miséria – e quanto mais compreensão despertava nele, mais a miséria desaparecia. Então, um dia, ele veio a entender que o desejo é veneno. Se você desejou, você caiu vítima: agora não há possibilidade de você estar feliz. Você só pode ter esperança – esperança e frustração; então, mais esperança e mais frustração. Esse será seu círculo. E quando você fica mais frustrado, você espera mais, porque esse é o único consolo. Você continua se movendo no futuro, porque, no presente, você sempre teve frustração – e a frustração está chegando por causa de seu passado.
No passado, este presente era o futuro e você esperava por ele. Agora ele é uma frustração. Então, você espera novamente pelo futuro; e quando ele se tornar o presente, você novamente ficará frustrado. Então, você esperará novamente. Então, mais frustração, mais esperança; e com mais esperança, ainda mais frustração. Isso é um círculo vicioso. É isso o que é a roda do sansara.

Mas nenhum buda pode lhe dar seus olhos. E é bom que eles não possam ser dados a você; do contrário, você permaneceria sempre uma fraude, eternamente. Então, você nunca se tornaria autêntico. É bom sofrer, porque somente através do sofrimento você se tornará autêntico e real.

Assim, a primeira coisa: mova-se com seus desejos de forma que você possa compreender o que eles são. Experiencie qualquer sofrimento que esteja escondido ali. Deixe aquilo ser relevante para você.

Somente isso é austeridade – somente isso é tapascharya.

Naropa diz que se você puder estar alerta, cada desejo o leva para o nirvana. E esse é o sentido, porque se você está alerta, você sabe que todo desejo é miséria. E quando você esquadrinhou cada canto e esquina do desejo, de repente você pára. Nessa parada, o acontecimento; e ele sempre esteve presente. Esse acontecimento sempre está esperando por você, esperando para encontrá-lo no presente. Mas você nunca está no presente, você está sempre sonhando. A realidade o sustenta: por causa do real você está vivo, por causa do real você existe. Mas você continua se movendo no irreal. O irreal é muito hipnótico.

Eu ouvi uma piada judia…
Dois velhos amigos se encontraram depois de muitos, muitos anos. Então um amigo disse para o outro:
– Eu não o vejo há vinte e cinco anos. Como está seu filho, seu menino Harry? – O outro disse:
– Ele é um grande poeta. Por toda essa terra sua voz é ouvida, suas canções são cantadas e aqueles que conhecem poesia dizem que, mais cedo ou mais tarde, ele irá se tornar um laureado do Nobel. – O outro amigo disse:
– Maravilhoso! E conte-me sobre seu segundo filho, o Benny. Como ele está? – O amigo disse:
– Eu estou tão feliz com meu segundo filho. Ele é um líder, um grande líder político. Milhares e milhares o seguem e estou certo de que, mais cedo ou mais tarde, ele será o primeiro-ministro deste país. – Então o amigo disse:
– Meu Deus! Que afortunado você é! E com relação a seu terceiro filho, Izzie? – O pai ficou muito triste e disse:
– Izzie? Ele ainda é Izzie. É um alfaiate. Mas eu lhe digo que se não fosse por Izzie, todos nós estaríamos morrendo de fome.

Mas o pai estava triste, porque Izzie era apenas um alfaiate. E o poeta e o grande político, o grande líder – eles são sonhos. Izzie é a realidade – o alfaiate. “Mas se não fosse Izzie, nós todos estaríamos morrendo de fome.” – ele disse.
Você não poderia existir se não fosse por este momento. Isso é real. Mas você nunca está feliz com isso. Você está feliz em seus sonhos, com o futuro, com laureados do Nobel, primeiros-ministros… Neste momento, “Izzie é apenas um alfaiate!”. Sua realidade está onde você está enraizado; seus sonhos não são seu chão. Eles são falsos. Chegue a um acordo com sua realidade no momento presente. Encontre-a, encare-a, seja ela qual for; e não permita que a mente se mova para o futuro. O futuro é o desejo. Se você puder estar aqui e agora, você é um buda. Se você não puder estar aqui e agora, então tudo é apenas matéria de sonho.

E você terá de voltar, porque os sonhos não o levam a nenhum lugar. Eles só podem levá-lo para a esperança e para a frustração, mas nada real acontece através deles. Mas lembre-se de minha advertência de que você não pode imitar.

Você terá de passar através do sofrimento. O sofrimento é o caminho. Ele o purifica, ele o torna alerta, ele o torna consciente. Quanto mais consciente, menos você é preenchido de desejo. Se você está perfeitamente consciente, nenhum desejo acontece e a meditação não significa nada mais do que consciência perfeita.

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Foto por sambukot (licença de uso BY-NC-SA Creative Commons)

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56 Comments

  1. says: Antônio Luiz Rodrigues Pinto
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