Revelações essenciais do Buda: a magnânima verdade da impermanência e a decorrente insatisfação humana

Para entender os principais ensinamentos do Buda e do Budismo (e todas as suas escolas, como o Budismo Tibetano, o Zen Budismo, etc), ou, poderíamos dizer, para caminhar em direção à Verdade, é essencial estudar e compreender a realidade da impermanência. “Anicca“, palavra do Pāli que significa “impermanência” (ou mais literalmente “inconstante”) é explicada em termos essenciais e muito claramente pelo monge americano Bhikkhu Bodhi, mestre do Budismo Theravada e grande tradutor dos originais do idioma Pāli, nesta Introdução ao Majjhima Nikaya (abaixo)– uma das coleções de discursos do Buda Gautama. Compreender a impermanência é compreender como se produz o sofrimento humano, ou,  como diz Bhikkhu, “essa qualidade insatisfatória do condicionado (sofrimento) é devido à sua impermanência, sua vulnerabilidade à dor e devido à sua inabilidade em proporcionar satisfação completa e duradoura”.

No primeiro trecho, Bhikkhu Bodhi explica as Quatro Nobre Verdades como ensinadas pelo Buda. Logo depois, explica o conceito de dukkha, ou sofrimento, que é o centro das Quatro Nobre Verdades. Então reserva dois grandes parágrafos à impermanência. Dukkha (sofrimento ou insatisfação), anicca (impermanência) e anatta (não-alma ou não-eu) são as Três Marcas da Existência do Budismo, que uma vez compreendidas inteiramente trariam fim ao sofrimento humano.

A íntegra do texto está no valioso site Acesso Ao Insight, em português.

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SOBRE A IMPERMANÊNCIA (do texto “INTRODUÇÃO AO MAJJHIMA NIKAYA”)
Por Bhikkhu Bodhi

(…)

O Dhamma descoberto e ensinado pelo Buda consiste no seu núcleo de Quatro Nobres Verdades:

a nobre verdade do sofrimento (dukkha)
a nobre verdade da origem do sofrimento (dukkhasamudaya)
a nobre verdade da cessação do sofrimento (dukkhanirodha)
a nobre verdade do caminho que conduz à cessação do sofrimento (dukkhanirodhagaminipatipada)

É para essas quatro verdades que o Buda despertou na noite da sua iluminação; revelando-as para o mundo quando ele colocou em movimento a inigualável Roda do Dhamma em Benares e mantendo-as num patamar elevado através dos quarenta e cinco anos do seu ministério como “o ensinamento particular dos Budas”. (…) Embora as Quatro Nobres Verdades sejam apresentadas de forma explícita só de vez em quando, elas estruturam todo o ensinamento do Buda, contendo em si mesmas seus muitos outros princípios, da mesma forma como a pegada do elefante contém em si as pegadas de todos os outros animais.

A noção fundamental ao redor da qual giram as verdades é dukkha, traduzido como “sofrimento”. Originalmente, a palavra em Pali significava simplesmente dor e sofrimento, um significado que é mantido nos textos quando essa palavra é usada como uma qualidade das sensações: nesses casos dukkha tem sido interpretado como “dor” ou “doloroso.” Como primeira verdade, no entanto, dukkha tem um significado muito mais amplo, que reflete uma visão filosófica completa. Enquanto dukkha toma o colorido emocional da conexão com a dor e o sofrimento, e com certeza inclui estes, ele aponta para mais além desse significado limitado, para a insatisfação inerente em tudo aquilo que é condicionado. Essa qualidade insatisfatória do condicionado é devido à sua impermanência, sua vulnerabilidade à dor e devido à sua inabilidade em proporcionar satisfação completa e duradoura.

A noção de impermanência, (anicca), constitui o fundamento do ensinamento do Buda, e foi esse insight inicial que empurrou o Bodisatva a deixar o palácio em busca do caminho pela iluminação. A impermanência, na visão Budista, compreende a totalidade da existência condicionada, variando numa escala que vai do cósmico ao microscópico. No ponto extremo dessa escala, a visão do Buda revela um universo com dimensões imensas evoluindo e se desintegrando em ciclos repetitivos sem um princípio que possa ser determinado – “muitos ciclos cósmicos de contração, muitos ciclos cósmicos de expansão, muitos ciclos cósmicos de contração e expansão”. No ponto médio dessa escala, a marca da impermanência se manifesta na nossa inescapável mortalidade,essa nossa condição de seres atados ao envelhecimento, enfermidade e morte, possuidores de um corpo que está sujeito “a ser gasto e pulverizado, à dissolução e desintegração”. E no outro extremo da escala, o ensinamento do Buda revela a impermanência radical que só pode ser observada através da atenção prolongada daquilo que é experimentado no momento presente: o fato de que todos os elementos do nosso ser, corporal e mental, estão num processo contínuo, surgindo e cessando em rápida sucessão, de momento a momento, sem nenhuma substância persistente subjacente. Durante a própria observação eles estão sujeitos à “destruição, desaparecimento, decadência e cessação”.

Essa característica da impermanência, que marca tudo que é condicionado, conduz diretamente ao reconhecimento da universalidade de dukkha ou sofrimento. O Buda ressalta esse aspecto ubíquo de dukkha na sua explanação da primeira nobre verdade, quando ele diz, “em resumo, os cinco agregados influenciados pelo apego são sofrimento.” Os cinco agregados influenciados pelo apego, (panc’upadanakkhandha), são um esquema classificatório que o Buda desenvolveu para demonstrar a natureza composta da identidade. O esquema compreende todos os possíveis tipos de estados condicionados, que estão distribuídos em cinco categorias: forma material, sensação, percepção, formações mentais e consciência. O agregado da forma material, (rupa), inclui o corpo físico com as suas faculdades dos sentidos bem como os objetos materiais externos. O agregado da sensação, (vedana), é o elemento emotivo das experiências, quer sejam prazerosas, dolorosas ou neutras. A percepção, (sañña), o terceiro agregado, é o fator responsável por notar as qualidades das coisas e também se responsabiliza pela identificação e memória. O agregado das formações, (sankhara), é um termo abrangente que inclui todos os aspectos volitivos, emocionais e intelectuais da vida mental. E a consciência, (viññana), o quinto agregado, é o nível básico da consciência de um objeto, indispensável para qualquer cognição. Como mostra o venerável Sariputta na sua habilidosa análise da primeira nobre verdade, os representantes dos cinco agregados estão presentes em cada ocorrência da experiência, surgindo em conexão com cada uma das seis faculdades dos sentidos e seus objetos.

A afirmação do Buda de que os cinco agregados são dukkha revela que as coisas com as quais nos identificamos e que consideramos ser a base para a felicidade, vistas corretamente, são a base para o sofrimento que tememos. Mesmo quando nos sentimos confortáveis e seguros, a instabilidade dos agregados é em si mesma uma fonte de opressão e nos mantém continuamente expostos ao sofrimento nas suas formas mais evidentes. A situação toda se multiplica em outras dimensões, além do que pode ser conjecturado, quando tomamos em conta a revelação do Buda sobre o fato do renascimento. Todos os seres, nos quais a ignorância e o desejo estão presentes, perambulam no ciclo de repetidas existências, samsara, onde cada ciclo traz o sofrimento de um novo nascimento, envelhecimento, enfermidade e morte. Todos os estados de existência dentro de samsara, sendo obrigatoriamente transitórios e sujeitos à mudança, são incapazes de proporcionar segurança duradoura. A vida em qualquer mundo é instável, é varrida, não tem refúgio nem protetor, não tem nada que lhe pertença.

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Foto de Jeannie (licença de uso BY-NC-ND Creative Commons)

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