“Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo, Buda”: Nietzsche sobre o ressentimento

Não raras vezes a filosofia do alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) se aventurou pela psicologia e buscou nas sensações corporais, emocionais e mentais do homem suporte para chegar às respostas para as questões da vida, e o ressentimento é um dos seus temas recorrentes e que estão neste texto do seu último livro original, “Ecce Homo – Ou como se chega a ser o que se é“. No capítulo “Por Que Sou Tão Sábio“, Nietzsche invoca Buda para embasar e construir a lógica que chamou de “fatalismo russo“, aquele que se solta e desiste da reação, e que encontra a cura.

Ecce Homo” é datado de 1888, e foi publicado pela primeira vez em 1908. Segue abaixo a parte “5” do capítulo “Porque Sou Tão Sábio” (grifos meus).

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ECCE HOMO – Ou como se chegar a ser o que se é
Capítulo “Porque Sou Tão Sábio”
Por Friedrich Nietzsche (tradução de Artur Morão)

A ausência de ressentimento, a clarividência sobre o ressentimento – quem sabe se, em última análise, por elas devo também ser grato à minha longa enfermidade? O problema não é simples: há que ter feito a experiência a partir da força e também da fraqueza. Se algo em geral se deve objectar contra a doença, contra a fraqueza, é que nela o genuíno instinto da cura, isto é, o instinto de defesa e de combate, se enfraquece no homem. Não sabemos desembaraçar-nos de nada, não sabemos acabar seja com o que for, nada sabemos repelir – tudo nos fere. O homem e a coisa aproximam-se de modo obstrutivo, as vivências afectam-nos com demasiada profundidade, a recordação é uma ferida purulenta. Estar doente é também uma espécie de ressentimento.

Contra isto o doente tem apenas um grande remédio – dou-lhe o nome de fatalismo russo, aquele fatalismo sem revolta, com que um soldado russo, para o qual é demasiado dura a campanha, se deita por fim na neve. Nada mais tomar em geral, não absorver em si seja o que for – não mais reagir… A grande razão deste fatalismo, que nem sempre é apenas a coragem para a morte, conservador da vida nas circunstâncias para ela mais perigosas, é a redução do metabolismo, o seu retardamento, uma espécie de vontade de hibernação. Alguns passos mais nesta lógica e tem-se o faquir, que dorme durante semanas num esquife… Porque o homem se esgotaria demasiado depressa, se em geral reagisse, então não reage: eis a lógica. E com nada mais ele se consome a não ser com os afectos do ressentimento. O despeito, a susceptibilidade mórbida, a impotência para a retaliação, a inveja, a sede de vingança, o que há de venenoso em cada sentido – eis decerto, para o esgotado, o modo mais desvantajoso de reagir: condiciona-se assim um rápido desgaste de energia nervosa, uma intensificação doentia de secreções nocivas, por exemplo, a bílis no estômago. O ressentimento é em si o que está proibido aos doentes – o seu mal: infelizmente, é também a sua tendência mais natural.

Isso foi o que entendeu muito bem aquele profundo fisiólogo, Buda. A sua «religião», que antes se deveria denominar higiene, para não a confundir com coisas tão lastimosas como o cristianismo, fez depender a sua eficácia da vitória sobre o ressentimento: libertar dele a alma – eis o primeiro passo para a cura. «Não é pela inimizade que se chega ao fim da inimizade, é pela amizade que se põe fim à inimizade…: eis o começo da doutrina de Buda – aqui não fala a moral, mas a fisiologia.

O ressentimento, nascido da fraqueza, a ninguém é mais nocivo do que ao próprio fraco – noutros casos, onde o pressuposto é uma natureza rica, um sentimento excessivo , um sentimento de que assenhorear-se é quase a prova da riqueza. Quem conhece a seriedade com que a minha filosofia empreendeu a luta contra os sentimentos de vingança e de simpatia até à doutrina da «vontade livre» – a luta com o cristianismo constitui apenas um seu caso particular – compreenderá porque é que aqui trago à plena luz a minha conduta pessoal, a minha segurança do instinto na prática. Nos momentos da décadence, interditava-os a mim como nocivos; logo que a vida se tornava de novo rica e assaz altiva, opunha-me a eles como abaixo de mim. Aquele «fatalismo russo», de que falei, emergiu em mim porque me ative tenazmente, ao longo dos anos, a situações, lugares, habitações, companhias quase insuportáveis, após me terem sido dadas por acaso – era melhor do que modificá-las, do que sentir que se poderiam modificar – do que contra elas se rebelar. Considerava então como mortalmente mau o que em semelhante fatalismo me perturbava e dele à força me despertava: – na verdade, isso era de cada vez mortalmente perigoso. – Considerar-se a si mesmo como um não querer ser «outro» – tal é em semelhantes circunstâncias a própria grande razão.”

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